O juízo da comarca de Brasília de Minas acolheu pedido de tutela antecipada de urgência formulado pela Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) e determinou ao Poder Executivo municipal a adoção imediata de medidas concretas para estruturar uma equipe de profissionais especializados no atendimento a pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O município terá 60 dias para apresentar um Plano de Atuação Estrutural (PAE), contendo diagnóstico da demanda e da fila de espera, capacidade instalada, orçamento detalhado, plano de recursos humanos e de estrutura física, metas, cronograma de universalização e plano de execução financeira.
A decisão judicial, proferida em 21 de outubro, atende aos pedidos centrais formulados na Ação Civil Pública (ACP) assinada pelo defensor público Cárlisson Cavalcanti Tenório Lins de Lima.
Falta de atendimento especializado
Atualmente, Brasília de Minas não possui equipe especializada para oferecer atendimento multidisciplinar a crianças, adolescentes e adultos com autismo. Os pacientes são encaminhados ao Serviço Especializado em Reabilitação da Deficiência Intelectual e Autismo (SERDI), mantido pelo Estado de Minas Gerais em Mirabela.
Famílias relatam que o serviço é insuficiente, instável e inseguro. Há inclusive o registro de um caso trágico: a morte de uma criança com autismo e de sua mãe em acidente durante o deslocamento para o tratamento, realizado em veículo próprio.
A situação é agravada pela distribuição dos atendimentos estaduais entre Mirabela, Janaúba, Januária e Montes Claros, o que dificulta o acompanhamento contínuo e leva ao abandono de tratamentos, seja pela distância, pelos riscos, pelos custos ou pela falta de resultados terapêuticos.
Recursos existem, mas faltam ações
Apesar de existirem recursos federais disponíveis para o atendimento de pessoas com deficiência, provenientes da Resolução nº 7.924/2021 da Secretaria de Estado de Saúde, nenhuma medida concreta foi adotada pelo município.
Segundo a Defensoria, as reiteradas solicitações feitas por famílias, entidades da sociedade civil e pela própria DPMG, pedindo a formação de uma equipe mínima multidisciplinar (com neuropediatra, psicólogo, fonoaudiólogo e psicopedagogo), foram ignoradas.
A Defensoria tentou solucionar o impasse de forma administrativa. Em março deste ano, a Secretaria Municipal de Saúde informou não ter estrutura própria para o atendimento de pessoas com autismo, limitando-se a encaminhá-las ao SERDI, embora reconhecesse a existência de recursos disponíveis.
Em agosto, após nova requisição da Defensoria Pública, a Secretaria apresentou um Plano de Ação datado de junho de 2024, mas sem comprovar qualquer avanço na criação de estrutura local. Diante da omissão, a DPMG instaurou um Procedimento Administrativo de Tutela Coletiva (PTAC) e solicitou informações detalhadas sobre a estrutura e o uso dos recursos.
As respostas municipais continuaram genéricas. Servidoras da própria Secretaria de Saúde confirmaram à Defensoria a ausência de ações efetivas.
Impacto nas famílias e omissão do poder público
Depoimentos colhidos pela Defensoria e pelo Conselho Tutelar revelaram que a falta de profissionais especializados deixa diversas famílias em situação de acentuada vulnerabilidade biopsicossocial, muitas delas enfrentando condições crônicas e deficiências múltiplas.
Segundo a DPMG, essa omissão compromete as políticas públicas de saúde, causando descontinuidade no cuidado, agravamento de quadros clínicos e sobrecarga dos serviços médicos, sobretudo para crianças e adolescentes.
Gastos com festas contrastam com falta de estrutura em saúde
A Defensoria também destacou o alto volume de recursos gastos pela Prefeitura com eventos festivos. Somente em 2025, foram R$ 1.145.500,00 destinados à contratação de atrações musicais e R$ 10.918.182,56 para a locação de equipamentos utilizados nas festividades.
Embora reconheça a importância do direito ao lazer, a DPMG criticou a opção orçamentária que prioriza o entretenimento em detrimento de políticas públicas essenciais.
“O Município incorre em flagrante falha no cumprimento de seu dever constitucional ao privilegiar o lazer em detrimento da saúde pública local, especialmente com relação ao grupo de pessoas com autismo, inegavelmente hipervulnerabilizadas”, afirma a Defensoria na ACP.
Para a Instituição, a falta de investimentos na saúde não decorre da ausência de recursos, mas sim de má gestão e desinteresse político.
Fundamentos jurídicos
Na ação, a Defensoria fundamenta o pedido no direito à saúde garantido pela Constituição Federal e pela Lei Orgânica da Saúde, que impõem a todos os entes federativos o dever solidário de garantir atendimento integral à população.
A DPMG também cita tratados internacionais de direitos humanos e defende o controle de convencionalidade das políticas públicas.
“A omissão em prover atendimento adequado de saúde configura grave violação aos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, expondo-o, inclusive, à responsabilização internacional.”
A Defensoria destaca ainda as normas específicas de proteção às pessoas com deficiência, como a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão, que garantem transporte, acomodação e acesso a serviços adequados.
No âmbito local, a Lei Municipal nº 2.080/2019 já instituiu a Política Municipal de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, o que reforça a obrigação do Município.
“Ao se omitir de estruturar minimamente a rede de atendimento multidisciplinar, o Município viola simultaneamente a Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos, a legislação federal e estadual, e sua própria lei municipal”, argumenta a Defensoria.
Transformação estrutural
Segundo a DPMG, a ação não busca uma condenação isolada, mas sim corrigir uma falha estrutural grave na prestação de serviços de saúde.
“Não se busca uma mera indenização ou uma obrigação de fazer pontual, mas a transformação de uma realidade de desassistência”, afirma a Defensoria Pública.
Conforme argumentado pela Instituição, a modalidade de processo estrutural é a mais adequada para a avaliação judicial, devido à complexidade do problema, que envolve a necessidade de organização de serviços, capacitação de profissionais e alocação de recursos. Processo estrutural é um processo coletivo no qual se pretende, pela atuação jurisdicional, a reorganização de uma estrutura, pública ou privada, que causa, fomenta ou viabiliza a ocorrência de uma violação a direitos, pelo modo como funciona, originando um litígio estrutural.
Decisão judicial
O Juízo da comarca de Brasília de Minas acolheu os pedidos centrais da DPMG e determinou que, em até 60 dias, o Município:
adote medidas concretas e urgentes para suprir o déficit de profissionais especializados no atendimento às pessoas com autismo;
apresente o Plano de Atuação Estrutural (PAE), com diagnóstico, orçamento, metas e cronograma de execução.
A decisão representa uma vitória para famílias e pessoas com autismo em Brasília de Minas, que aguardam há anos por um atendimento digno e acessível em sua própria cidade.