Defensores(as) Públicos(as): Marcelo Dayrell, Ana Carolina Ivo Khouri (PE), André Carneiro Leão (PE), Bruno Muller (PR), Daniel Palotti Secco (SP), Flavio Américo Frasseto (SP), Maira de Carvalho Pereira Mesquita (PE), Renan Vinicius Sotto Mayor de Oliveira (DPU-MT), Rodrigo Azambuja Martins (RJ), Rosana Esteves Monteiro Sotto Mayor (MT), Thaisa Guerreiro (RJ) e Thales Arcoverde Treiger (RJ).
Dentre as lutas empreendidas pelas defensorias públicas no Brasil, nos últimos anos, está o enfrentamento ao problemático acolhimento de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas, muitas vezes realizando (também) ilegalmente internações psiquiátricas. Essas instituições têm crescido numericamente e se apresentam como opção imediatamente disponível nos diversos municípios, com incentivo financeiro federal.
Trata-se de locais para abrigamento de pessoas em uso problemático de drogas, em geral localizados em sítios isolados ou de difícil acesso, e que não são serviços de saúde, tampouco atuam de forma integrada com estes ou com os serviços de educação. Assim, não há equipe de profissionais especializados disponíveis e não há atendimento técnico adequado. Nesses espaços, crianças e adolescentes não têm acesso a escolas, esporte, convívio comunitário, tampouco às unidades de saúde, além de existirem diversos relatos de trabalhos forçados, castigos físicos e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Ficam afastados de seus pais e familiares e alijados da convivência familiar e comunitária, o que só contribui e agrava o sofrimento psíquico de quem já se situação em condição de vulnerabilidade.
Conforme apurou o "Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas - 2017", elaborado pelo Conselho Federal de Psicologia, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, diversas violações de direitos têm ocorrido nesses espaços, em que muitas famílias, em razão de promessas infundadas, ainda acreditam, muitas vezes incorrendo em altos gastos e com apoio de lideranças religiosas. Investem acreditando em uma suposta proteção integral que é incompatível com o próprio modus operandi das comunidades terapêuticas.
A previsão legal das comunidades terapêuticas na lei de drogas, em 2019, com característica de acolhimento e não de tratamento e a vedação expressa da realização de internações ensejou dúvidas se é possível sua utilização para o público infantojuvenil. Naquela oportunidade, em Congresso Nacional de Defensoras e Defensores Públicos da Infância e da Juventude, debatemos e aprovamos um posicionamento institucional (tese) sobre impossibilidade de acolhimento de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas. O fundamento jurídico é de que a regulamentação trazida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente sobre cuidado em saúde e sobre hipóteses de acolhimento e afastamento de criança e adolescente do convívio familiar é norma especial e mais protetiva à infância e juventude. Assim, a previsão da lei de drogas é incompatível com a normativa estatutária, por clara violação ao direito à proteção integral insculpido na Constituição Federal e ao direito à saúde mental e cuidado em liberdade trazido pelas normas e políticas específicas do tema.
Porém, em 2020, no auge da pandemia de covid-19, sem qualquer participação social, o CONAD - Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas editou a resolução 03/20 acerca do acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas. E aqui sequer foi ouvido o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente ou outros conselhos temáticos (saúde, educação, assistência social ou direitos humanos).
A aprovação dessa resolução, autorizando o acolhimento e ofertando financiamento federal, exigiu a reunião de argumentos jurídicos e forte interlocução social para o enfrentamento dessa política ilegal pelas Defensorias federal e estaduais. Foi provavelmente a primeira vez que defensores públicos de diferentes estados e também membros de Defensoria Pública da União também em diversos estados se juntaram para enfrentar uma violação de direitos humanos em âmbito nacional, nesse caso focando-se no direito à saúde e no direito de crianças e adolescentes.
É clara a ilegalidade de acolhimento a crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas, mas não se ignora a dificuldade do tema. Situações críticas e dramáticas ocorrem todos os dias e as comunidades terapêuticas podem parecer ser a "saída" fácil ou a única opção, uma verdadeira tábua de salvação. No entanto, é inconcebível que, num momento pandêmico mundial, o governo federal tenha engendrado um mecanismo de exclusão e violação de direitos.
Atentos às violações que essa normativa significava, as Defensorias recomendaram ao CONAD a revogação da normativa e fomentaram e participaram de eventos virtuais em conjunto com relevantes atores, tendo havido ainda, nesse contexto, a publicação de uma carta de cinco ex-Ministros da Saúde de diferentes governos entre 2003 e 2020 (Arthur Chioro, Alexandre Padilha, José Agenor Alvarez da Silva, José Gomes Temporão, José Saraiva Felipe e Nelson Teich). O Governo Federal recusou-se à solução extrajudicial, sendo ajuizada ação civil pública (nº 0813132-12.2021.4.05.8300), perante a Justiça Federal, na qual também fomentamos pedidos de amicus curiae por entidades da sociedade civil comprometidas com o tema - IBCCRIM, Conectas, IBDCRIA, Instituto Ilana, ABRASME, RENILA e CADHu (Coletivo de Advogadas e Advogados em Direitos Humanos), a favor do pedido apresentado pelas defensorias públicas. Na mesma época, alguns conselhos estaduais se manifestaram contrariamente à possibilidade de acolhimento ou internação de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas.
Em 1ª instância foi deferida liminar determinado a suspensão dos efeitos da resolução CONAD e do acolhimento de qualquer adolescente nas comunidades terapêuticas de todo o país, bem como a suspensão do financiamento federal e o desligamento dos adolescentes atualmente acolhidos, em 90 dias, devendo o Ministério da Saúde assegurar seu atendimento no âmbito do SUS. Essa decisão foi suspensa provisoriamente após recurso da União.
Durante a instrução processual, para nossa surpresa, o Governo Federal de então sequer sabia onde estavam as vagas financiadas e quem as ocupava. A manutenção de adolescentes em uma instituição "total" demonstrou que essa modalidade de atendimento realmente não era adequada ao público atendido, além de se verificar um completo descontrole na utilização dos recursos públicos.
A sentença acolheu amplamente os pedidos iniciais e reconheceu a ilegalidade e violação de direitos, mas a União seguiu perseguindo a reforma da sentença em sede de apelação. Após diálogos judiciais e extrajudiciais iniciados em 2023, a União decidiu, em junho de 2025, pela revogação da Resolução, pelo fim do financiamento a vagas para adolescentes e pela implementação de PTS para desinstitucionalização de todos os adolescentes internados anteriormente custeados pela União. Um dos importantes atores também foi o CONANDA - Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes que, em julho de 2024, editou a resolução 249/24 probindo o acolhimento de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas.
Conselhos de direitos e de políticas públicas, movimentos sociais e defensorias públicas, nos Estados e na União, atuaram, politicamente e baseados em argumentos jurídicos e técnicos, defendendo o modelo já desenhado como política pública em saúde mental, a ser seguido e financiado, e auxiliando os adolescentes a escreverem um projeto de vida baseado no cuidado em liberdade. Reafirmamos, assim, nosso compromisso com o direito à saúde mental e com o direito das crianças e dos adolescentes, comemorados, respectivamente, nesses dias 10 e 12 de outubro!