Em um país com mais de 84 milhões de processos na justiça estadual, é natural que haja pressão da sociedade por respostas e soluções eficazes por parte do sistema de justiça. Nesse contexto, um tema ganha destaque no Congresso Nacional e nas Cortes Superiores: o processo estrutural – tipo de ação que chega ao Poder Judiciário quando políticas públicas ou privadas são insuficientes para assegurar determinados direitos. Foi nesse cenário que, nesta quinta-feira (28/11), a ANADEP e a ENADEP promoveram o I Encontro Nacional de Capacitação da Defensoria Pública sobre Litígios e Processos Estruturais. O evento foi transmitido pelo canal da ANADEP no YouTube e contou com a participação inédita do primeiro Grupo de Estudos da ENADEP, composto por defensoras e defensores públicos de diversos estados.
O Brasil ainda não possui regulamentação para essa prática. O tema está em discussão por uma Comissão de Juristas no Senado, presidida pelo subprocurador-geral da República, Augusto Aras, que apresentou o relatório preliminar de anteprojeto do Código de Processo Estrutural. Esse trabalho incluiu sugestões do Grupo de Estudos da ENADEP.
Na abertura da capacitação, o diretor da ENADEP, Cristiano Matos, destacou os desafios enfrentados pelas defensoras e defensores públicos no dia a dia. "Essas demandas complexas exigem respostas que não são convencionais. Essas problemáticas surgem na Defensoria Pública e no sistema de justiça em áreas como a ambiental, a justiça climática e o acesso à saúde, entre outras. Todos os temas tratados aqui são fundamentais para a atuação constitucional da Defensoria Pública, que promove os direitos humanos, tanto no âmbito nacional quanto no sistema interamericano de direitos humanos", afirmou.
A presidenta da ANADEP, Rivana Ricarte, ressaltou a importância do Grupo de Trabalho no âmbito da ANADEP/ENADEP para debater um tema em evidência no Congresso Nacional, com o objetivo de criar o primeiro Código de Processo Estrutural no Brasil. "Defensoras e defensores públicos de todo o país unem-se para contribuir com a comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto. Estamos reunidos para propor a melhor evolução legislativa e processual, visando prestar o melhor serviço às pessoas, especialmente àquelas em situação de vulnerabilidade", destacou.
Durante o encontro, foram discutidos temas como: a relevância da Defensoria nos processos estruturais; a (des)estruturação da(s) (in)justiça(s); os sistemas internacionais de proteção e reparação; questões práticas na atuação da Defensoria Pública; ações individuais e processos estruturais; o combate à sub-representatividade; a representação de grupos; e a atuação extrajudicial em problemas estruturais.
A defensora pública do Rio Grande do Sul e ex-presidenta da ANADEP, Patrícia Kettermann, foi a mediadora dos painéis. "Nós somos um grupo previamente formado justamente em virtude da relevância do assunto e da necessidade de a Defensoria Pública se apropriar desse tipo de atuação de uma maneira muito mais eficiente e propositiva", frisou durante a sua exposição.
Os desafios e contribuições da Defensoria Pública
Matheus Casimiro, doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e assessor especial da Presidência do STF, falou sobre a importância da Defensoria Pública nos processos estruturais, mencionando sua atuação como Custos Vulnerabilis. Ele também destacou o volume de ações individuais como sintoma de problemas estruturais coletivos.
"O processo hoje no Brasil ocorre no 8 ou 80: ou está em primeira instância, em Ação Civil Pública, ou vai diretamente ao Supremo. Não temos o meio-termo. Não há processos estruturais no TRF, TJ ou STJ. Assim, a Defensoria Pública pode identificar problemas e propor soluções, principalmente através do ajuizamento de ações individuais, que revelam a magnitude de problemas estruturais. Embora criticadas, essas ações em massa demonstram a gravidade de certas questões", explicou.
Amélia Rocha, defensora pública do Ceará, abordou "a desestruturação das injustiças" e tratou de três pontos: o papel institucional da Defensoria Pública, a reprodução de um direito "eurocentrado" e a efetividade de direitos. "A atuação cotidiana da Defensoria Pública lida diretamente com demandas estruturais", afirmou.
Patrícia Magno, defensora pública do Rio de Janeiro, discutiu o processo estrutural sob a perspectiva dos sistemas internacionais de proteção e reparação, criticando a exclusão de grupos vulneráveis em concepções universais de direitos humanos. Ela também defendeu a importância do controle de convencionalidade.
"Reparação não é indenização apenas. Temos que falar da importância do acoplamento do direito internacional e o direito interno e a partir disso conceber um ornamento jurídico voltado para a proteção da pessoa humana. Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a reparação é um processo que tem um contexto de antes e depois. Quando a gente está falando de um processo de discriminação estrutural, a reparação tem que ter uma vocação transformadora. O objetivo é que fatos como aquele não se repitam. É destravar os nós que viabilizaram aquela violação", explicou.
A defensora pública do Rio de Janeiro Susana Cadore também deu luz ao debate às ações individuais e abordou a necessidade de analisar o desenho constitucional. Para ela, a Defensoria Pública não pode renunciar a nenhuma estratégia quando o foco principal é viabilizar o acesso à justiça de quem mais precisa. "Temos que olhar como esse litígio estrutural é uma conformação histórica da nossa sociedade. Ao falar deste mecanismo, é preciso falar que a gente se forja nos nossos atendimentos individuais e quando falo em coletivo, o meu medo é se descolar da realidade das pessoas: de não ter a troca do dia a dia e nem ouvir histórias em que conseguimos diagnosticar situações", explica.
Por sua vez, o defensor público do Amazonas Maurílio Casas Maia falou do papel da Defensoria Pública como instrumento da democracia e da sua missão constitucional na representação de grupos. Para ele, é fundamental que as comunidades ou grupos envolvidos nos litígios tenham autonomia.
"É preciso que cada grupo vulnerável tenha o seu megafone inclusive para poder divergir do Ministério Público e da própria Defensoria Pública. O grupo pode dizer que enquanto a Instituição busca o meio termo, ele que quer ir até o Supremo com aquele tema. A gente precisa diferenciar o que é a visão institucional da Defensoria Pública sobre aquele litígio e o que é a visão direta daquele grupo no caso. Mas quando as posições divergem, a gente precisa combater a sub-representatividade".
Encerramento
O último painel da capacitação abordou a atuação extrajudicial em problemas estruturais. Gustavo Dayrell, que atua na Defensoria Pública de Minas Gerais, relembrou alguns casos que envolveram a Instituição inclusive com olhar voltado para a atuação coletiva. O defensor público defende que haja uma uniformização nacional em relação ao tema.
Ele citou exemplos positivos que envolveu a uniformização de procedimentos das Defensorias Públicas: primeiro, no caso do trágico acidente da companhia VoePass que envolveu a atuação conjunta da DPE-SP e da DPE-PR. O projeto “Defensorias do Araguaia” que envolve as Defensorias Públicas de Tocantins, Goiás e Mato Grosso também foi mencionado.
"A gente vê que cada Defensoria regulamenta de forma discrepante uma da outra. Nós não precisamos criar dois procedimentos para nos autolimitar, mas a criação de um instrumento nosso já poderia servir para fazer o acompanhamento nessas medidas estruturais, obviamente, falando da demanda extrajudicial”.
O último participante do evento foi o defensor público de São Paulo Júlio Azevedo que finalizou as contribuições da capacitação falando sobre a atuação extrajudicial da Defensoria Pública em processos estruturais.
"Quando o processo estrutural traz esse amplo leque de oportunidades para o enfrentamento de interação de realidades, ele passa a ser um componente muito interessante à Defensoria Pública dentro dessa proposta. Esse é um lado humanitário porque ele é um processo dos inconformados otimistas. É um processo que se recusa a ver uma situação de grave inconstitucionalidade que lesa direitos fundamentais em larga escala e aceita a manutenção desse status quo. Então, a proposta de regulamentar todo esse processo estrutural, é bastante válida", frisou.