Aline Mota de Oliveira, mulher negra, feminista, antirracista, Defensora Pública, Coordenadora-adjunta da Comissão Étnico-Racial da Anadep, Coordenadora do Grupo de Trabalho pela Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado da Paraíba.
“Dorvi se lembrou do combinado, o juramento feito em voz uníssona, gritado sob o pipocar dos tiros: – A gente combinamos de não morrer! […] A morte incendeia a vida, como se essa estopa fosse. Molambos erigem fumaça no ar. Na lixeira, corpos são incinerados. A vida é capim, mato, lixo, é pele e cabelo. É e não é. Na televisão deu: – Mataram a mulher, puseram o corpo na lixeira e atearam fogo!”
“Não tem nenhum livro que diz que, pra uma preta, estudar feminismo pode ser uma tarefa infeliz. Enquanto as brancas lutavam sem medo pelo direito de trabalhar por elas, nossas bisas acordavam cedo e passavam as roupas delas, cozinhavam as comidas delas, lustravam os móveis delas e cuidavam das crianças delas. No feminismo acadêmico, um mar de onde me levou… A sufragista veio firme, mas a minha bisavó não votou. E até hoje eu me confundo, tentando entender a treta: Não votou porque era mulher ou não votou porque era preta? Na academia ou fora dela, que ao menos tenhamos sorte. Todas sonhamos ‘um tempo em que não tenhamos que ser tão fortes’.”
O mundo ocidental ceifou das mulheres negras a possibilidade da multiplicidade de suas narrativas, levando ao resto do mundo de forma autoritária, opressora e extremamente temerária uma história/narrativa única ao nosso respeito.
Com efeito, o ocidente impôs violentamente a nós mulheres negras uma “história única”, ao nos determinarem um locus de subalternidade extremo. Vale dizer, na sociedade ocidental, a partir de uma perspectiva interseccional, as mulheres negras integram a base da pirâmide social, não de forma homogênea, mas a partir da bipartição dos seguintes estereótipos: as mulheres negras retintas, de pele escura, são as destinadas ao trabalho braçal, enquanto as mulheres negras de pele clara à hiper sexualização de seus corpos, ambas animalizadas.
No entanto, se formos analisar a história de forma mais acurada, e, sob outras lentes, veremos que a mulher negra tem o mais importante papel na sociedade, tanto ocidental como oriental.
“[…] E quis lançar aos quatro ventos, pendurar uma faixa amarela, quando eu via uma pretinha triste, escrevia e dizia para ela que tudo nela é de se amar. Tudo. […] A forma como enfrenta a vida, tudo nela é de se amar. A pele preta já vem do ventre tatuada inteira de história, que é a memória ancestral retratada na forma do nariz, na forma como lida, como fala, como luta e como cala, porque luta até no silêncio dos lábios mordíveis, mastigando qualquer coisa, quando repara e se envergonha, o sorriso que contrasta. O tanto de amor que ela já sabe que vai precisar ensinar aos filhos, ela já guarda em cada maçã no rosto. Tudo nela é de se amar”
Calha destacar a importância da mulher nas religiões de matriz africana, e na cultura afro-brasileira de um modo geral.
“Bem pertinho da entrado do gueto,
Um terreiro de Angola e Ketu
Mãe maiamba que comanda o centro
Dona Oxúm dançando Oxóssi no tempo
Lá em cima no tamarineiro
Marinha da pipoca ajoelha
Em janeiro, no dia primeiro
Desce o dono do terreiro
Coquê”
As mulheres sempre ocuparam posição de prestígio nos espaços de religiosidade de matriz africana. Com efeito, a condição da mulher negra nesse ambiente é de muito respeito e valorização, o que difere muito dos demais espaços sociais.
O papel feminino foi fundamental para o fortalecimento, especialmente, do candomblé, por meio de suas variadas atuações, desde a sacerdotal, litúrgica, comercial e política.
Dentre essas importantes mulheres se destaca Maria Escolástica da Conceição Nazaré, conhecida popularmente como Mãe Menininha do Gantois, nascida em 10 de fevereiro de 1894, descendente direta de africanos, que deu continuidade a tradição familiar trazida por sua bisavó para a Bahia, desenvolvendo um respeitável trabalho, e inspirando diversas figuras da sociedade.
Destaca-se também a Irmandade da Boa Morte, um coletivo afrocatólico de ialorixás, localizado na cidade de Cachoeira (BA), símbolo de resistência feminina. As primeiras irmãs foram princesas africanas negras alforriadas, que se agregaram inicialmente no bairro da Barroquinha, na cidade de Salvador, nos idos de 1810/1840, posteriormente migraram para outros terreiros, e firmaram-se, em definitivo, no Recôncavo baiano, no Município de Cachoeira. Suas integrantes são devotas de Nossa Senhora da Boa Morte.
Cabe obtemperar, ainda, a história de resistência das mulheres do cangaço, movimento ocorrido entre o final do Século XVIII e o Século XIX. Foi verdadeiro movimento de resistência à Coroa portuguesa, e posteriormente ao Império brasileiro. A mais famosa comunidade do cangaço se localizou na região de Canudos (BA), onde se organizou uma verdadeira sociedade matriarcal: as mulheres exerciam a liderança, definiam estratégias de guerra,
Ante o exposto, forçoso concluir que as mulheres negras, mesmo relegadas a um local de profunda subalternidade e invisibilidade em nossa sociedade pela historiografia tradicional, em verdade, sempre protagonizaram a história. Nessa medida, qualquer enquadramento que as subalternizem é falacioso.
Dessa forma, é urgente reconhecer que a mulher negra tem papel de fundamental importância na construção e sustentação da nossa sociedade, ocupando lugar central e de destaque, sendo, pois, a mais profunda essência da nossa ancestralidade. Não é por outra razão que a autora e intelectual negra Angela Davis afirma que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
Notas_______________________
1 EVARISTO, Conceição. “Olhos d’água”. Fundação Biblioteca Nacional, 2016.
2 NASCIMENTO, Luciene. “Tudo nela é de se amar”. Estação Brasil, 2021.
3 Idem.
4 BROWN, Carlinhos. “Dandaluna”. Canção.
5 OLIVEIRA, Aline Mota. “Reta Final – Defensoria Pública do Estado da Bahia”. JusPodvm, 2021.
6 De acordo com a Ialorixá Mãe Antonieta de Oxum, “A religião sempre foi uma maneira de povos oprimidos articularem seus movimentos defensivos à dominação. No caso do Brasil, o candomblé surgiu historicamente como foco de resistência religiosa e cultural das populações negras para preservarem suas tradições e os elementos fundamentais do seu conjunto de crenças”. Antonieta Oliveira de Sousa. Condições filosóficas de ensino-aprendizagem em respeito às diferenças étnicas na contemporaneidade”.