Entre Robespierre e a impunidade - Artigo de Pedro Abramovay
Estado: DF
O advogado que empresta seu nome ao palácio sede do Ministério da Justiça, Raymundo Faoro, apresenta o Estado brasileiro como um monstro patrimonial-estamental-autoritário. Desta forte síntese é possível retirar um verdadeiro programa de ação para qualquer governo que se pretenda democrático: a reconstrução do Estado no Brasil que rompa com o patrimonialismo, com a estrutura burocrática estamental e com o autoritarismo emprenhados em nosso Leviatã tupiniquim.
A relação de cidadania entre o Estado e o povo brasileiro tem sido - ou foi por muito tempo - uma verdadeira farsa. Nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda, nossa democracia é um grande mal-entendido. Apesar de uma promessa constante de direitos, formalizados em lei, não é por meio destes que se dá a relação entre o Estado e os indivíduos.
Às classes desfavorecidas não se conferem direitos, mas favores, que alimentam um sistema de clientela e perpetuação de oligarquias no poder. Ao mesmo tempo, o Estado faz a sua autoridade ser sentida por meio de forte aparato repressivo voltado para punir justamente essas classes. Às classes dominantes também não se conferem direitos, mas privilégios, que se manifestam em apropriação patrimonialista daquilo que deveria ser público. Já o aparelho punitivo não as atinge, sendo a impunidade uma realidade constante.
O grande desafio nacional é justamente conseguir efetivar a cidadania estendendo o sistema de direitos a todos, de maneira indistinta. Possibilitar que o que é público seja repartido de maneira justa, e de acordo com critérios republicanos. Criar, também, um sistema punitivo que exerça seu poder com todos os freios impostos pela cidadania sem selecionar seus alvos de acordo com a origem social.
A Constituição, que acaba de completar 20 anos, poderia muito bem ser mais um capítulo de nossa farsa democrática. Não é o que mostram os dados sobre o País, sobretudo na última década. Se ainda não somos uma "sociedade livre, justa e solidária", conforme nos promete o seu artigo 3º, há o que comemorar uma expressiva redução da desigualdade, uma sensível melhora da educação e, entre vários outros avanços, uma radical mudança na cultura da impunidade sobre os poderosos.
O desmonte de quadrilhas que há décadas (séculos!) se apropriam do patrimônio público é, sem dúvida, uma das grandes conquistas de nossa democracia nos últimos anos. Há uma verdadeira mudança de cultura no que diz respeito à idéia de que os poderosos estão fora do alcance do poder coercitivo do Estado, e isso se deve tanto a uma decisão política de retirar os freios privados que pesavam sobre o poder quanto a um investimento maciço em tecnologia a serviço das polícias.
Entretanto, há um evidente risco no avanço do poder punitivo do Estado. Não se pode, à moda de Robespierre, transformar as polícias e o Ministério Público em verdadeiros Comitês de Salvação Pública que, sob o pretexto de limpar a República, desnaturem a própria democracia. E é exatamente por isso que não basta desmontar o "patrimonial-estamental" da fórmula de Faoro. É imprescindível erradicar o autoritarismo presente em nosso Estado. Não se trata, portanto, apenas de não mais impor freios ao poder punitivo, mas de substituir os freios privados pelos freios democráticos.
O maior símbolo do aumento da capacidade punitiva do Estado sobre os poderosos são as interceptações telefônicas. O avanço tecnológico possibilitou mudar a escala da utilização desse instrumento e isso tem servido de base para todas as grandes operações da Polícia Federal.
A lei que regula a execução de escutas telefônicas, os chamados grampos, no entanto, é anterior a esta mudança de escala e tornou-se, assim, obsoleta, não oferecendo as proteções necessárias aos direitos dos cidadãos.
Assim, com o intuito de impedir retrocesso no combate à impunidade e, ao mesmo tempo, garantir os direitos individuais, o governo federal encaminhou dois projetos de lei ao Congresso Nacional.
O primeiro, enviado em abril, estabelece um novo marco legal para as interceptações telefônicas. Este texto impõe o controle do Ministério Público sobre os pedidos de escutas; estabelece critérios mais claros e rígidos para a possibilidade de autorização judicial da quebra do sigilo telefônico; exige com mais rigor a fundamentação do juiz para estender a escuta por mais de 60 dias - tendo como limite máximo 360 dias; obriga que o material sonoro entregue às partes seja identificado para evitar vazamentos; cria um controle estatístico sobre os grampos no País (medida recentemente encampada pelo Conselho Nacional de Justiça); proíbe a utilização de gravação de conversa entre o cliente e o advogado, entre outras medidas. O conteúdo deste projeto, é importante frisar, foi incorporado ao PLS 525/07, de autoria do senador Jarbas Vasconcelos, por meio do relatório do senador Demóstenes Torres, recentemente aprovado pelo Senado Federal.
O segundo projeto, enviado em 18/9 ao Congresso, estabelece sanções para o uso ilegal das escutas telefônicas. Se for aprovado, será possível a demissão do servidor que fizer uma interceptação fora dos limites da lei, bem como do que vazar o conteúdo gravado. Também passa a ser crime a compra ou venda sem autorização de equipamentos que realizam escutas (hoje este comércio não é proibido e alimenta um universo criminoso que orbita em torno dos grampos ilegais), além de aumentar a pena para funcionários públicos envolvidos em quebras ilegais de sigilo telefônico.
O combate ao patrimonialismo é inteiramente compatível com o fortalecimento das liberdades individuais e com o controle democrático e juridicamente fundamentado do uso do aparato repressivo do Estado. O que não se pode é usar de maneira imprópria os direitos da pessoa humana para perpetuar na impunidade o uso patrimonialista dos recursos públicos e sociais.
Pedro Abramovay, advogado, foi assessor especial do ministro da Justiça e desde janeiro de 2007 é secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça






