Desdobramentos do procedimento para apuração de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente sob a égide dos princípios constitucionais
Estado: DF
Flávio Antônio de Oliveira é Defensor Público do Estado de Mato Grosso do Sul, Especialista em Direito Constitucional e Processual pela UFMS.
É notório que o escopo do procedimento para apuração de infração administrativa às normas de proteção à criança e ao adolescente é tutelar os infantes diante de eventual omissão da família e da sociedade, ou seja, o Estado tem atuação solidária, mas muitas vezes subsidiária quando a família e a sociedade não conseguem primeiramente atuar prevenindo uma conduta prejudicial à criança ou adolescente, mesmo que tais condutas sejam praticadas por estes próprios. Isso aliás, decorre do mandamento constitucional disposto no artigo 227.
Muito embora os menores sejam os sujeitos passivos das infrações administrativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, a quem se deve garantir absoluta prioridade em razão da condição que lhes é ínsita de pessoa em desenvolvimento, a fim de que não se exponham à toda a sorte de condutas desregradas passíveis de influir negativamente sobre sua formação, é imperioso assegurar-se aos sujeitos ativos dessas infrações todas as garantias constitucionais peculiares ao Estado Democrático de Direito, a fim de que o procedimento para apuração das potenciais infrações às normas tutelares se desenvolva rigorosamente segundo o devido processo legal, o que aliás também está positivado na Constituição da República.
Pois bem, a Lei 8.069/90, chamada de Estatuto da Criança e do Adolescente, traz na Seção VII o procedimento intitulado: “Da Apuração de Infração Administrativa às Normas de Proteção à Criança e ao Adolescente”, onde, a partir do artigo 194 trata do procedimento a ser observado pelo Juízo da Infância visando à apuração de supracitadas infrações administrativas.
Sinteticamente, o procedimento é iniciado por representação do Ministério Público ou do Conselho Tutelar, oportunizando-se ao representado a apresentação de defesa no prazo de 10 dias, sendo que apresentada esta, o Juízo poderá decidir no prazo de 5 dias ou então, antes de assim proceder, designará audiência de instrução e julgamento, quando ensejará ao Ministério Público e ao procurador do representado o tempo sucessivo de vinte minutos, prorrogável por mais dez minutos, para manifestação.
Consoante lições abalizadas da doutrina de Valter Kenji Ishida, prefaciando o escólio não menos autorizado de Cury, Garrido e Marçura, a natureza jurídica do procedimento enfocado é eminentemente administrativa e não de cunho jurisdicional1. Ishida, cita na mesma obra que o Pretório Excelso assim também decidiu, no Agravo de Instrumento nº 281.010-5-Rio de Janeiro – Rel. Min. Celso de Mello – Agte.:E.AN.Ltda. e Agravado: Ministério Público Estadual, quando negou-se provimento ao mesmo, tendo em vista que, por se tratar de procedimento de natureza eminentemente administrativa, não se amolda à figura de causa e, portanto, destituída de índole jurisdicional. O Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, também assim se posicionou:
"Não se deve perder de vista, que a aplicação da penalidade decorre de processo administrativo, afeto à polícia administrativa de proteção à criança e ao adolescente, entregue essa função administrativa à própria autoridade judiciária, nos termos da lei de regência, não havendo que se falar em inconstitucionalidade do art. 149 do ECA"2.
Neste ínterim, é que se faz mister tecer considerações acerca de algumas decisões judiciais proferidas com base em entendimentos, ao nosso ver, desrespeitosos aos mandamentos constitucionais. Senão vejamos.
O artigo 196 do ECA prevê que não apresentada a defesa no prazo legal, a autoridade judiciária dará vista dos autos ao Ministério Público por cinco dias, decidindo em igual prazo, sendo que o seguinte artigo 197 dispõe que mesmo sendo apresentada a defesa, a autoridade judiciária poderá proceder na conformidade do artigo anterior ou, se necessário, designará audiência de instrução e julgamento, onde oportunizará ao representante e representado prazo para manifestação.
Tem-se presenciado alguns arestos chancelando sentenças proferidas em prejuízo de representados no aludido procedimento, sem que lhes tenha sido assegurado produzir qualquer prova em sua defesa, ao argumento de que o artigo 197 do ECA permite que o Juízo assim proceda embasado no princípio da utilidade da prova, cujo destinatário é o próprio Juízo.
Sobre o tema, colaciona-se o seguinte aresto:
"A instrução probatória não é obrigatória e impositiva, pois a prova oral reclamada poderá mostrar-se desnecessária, ante os demais elementos abroquelados nos autos. Tanto isso é certo que o art. 197 do ECA dispõe que ‘apresentada a defesa, a autoridade judiciária procederá na conformidade do artigo anterior, ou sendo necessário, designará audiência de instrução e julgamento'. Vê-se que o Código da Infância e da Juventude adotou o princípio da utilidade da prova, de modo que esta será ou não produzida segundo sua necessidade, de acordo com a prudente apreciação do Juiz e respeitado o direito constitucional à ampla defesa."3
Com efeito, alguns advogam que o procedimento para apuração de infração às normas de proteção à criança e ao adolescente é subsidiado pelas normas do Código de Processo Civil. Quanto a isso, ousamos discordar em parte, pois, o artigo 152 do próprio E.C.A., dispõe que o C.P.C. será subsidiário no que concerne tão-somente às normas gerais, tal enunciado nada mais faz que enunciar o princípio da especialidade que rege o E.C.A.. Neste ínterim, visualize-se Ementa da 2ª Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça extraída do informativo STJ nº 0301. “Sic”:
“ECA. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. Nos termos do artigo 148, VI, da Lei n. 8.069/1990, é competente a Vara da Infância e da Juventude para aplicar as penalidades administrativas nos casos de infrações contra norma de proteção à criança e ao adolescente. Na forma prevista no art. 152 do ECA, somente se aplicam as normas gerais da legislação processual pertinente quando houver lacuna na legislação especial. Isso posto, a Turma deu provimento ao recurso para anular o aresto recorrido, a fim de determinar o processamento do recurso de apelação pelo Tribunal de Justiça.4”. Destacamos.
Assim, infere-se que o procedimento previsto para apuração de infrações às normas de proteção à criança e ao adolescente, além de ser eminentemente administrativo como pacificamente conceitua a doutrina e a jurisprudência, possui rito especial e próprio, não podendo ser subsidiado pelas normas do Código de Processo Civil, sob pena de violação do princípio geral de direito subsumido na especialidade, donde deflui a máxima “lex specialis derogat generalis”.
Corroborando o explanado, Norberto de Almeida Carride5 cita que: “Não obstante o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha adotado o sistema recursal do Código de Processo Civil, a competência para julgar os recursos interpostos das decisões proferidas nos procedimentos de apuração de infrações administrativas é das Câmaras Criminais”.
Logo, o julgamento do procedimento administrativo antecipadamente sem permitir que o representado produza as provas que entender imprescindíveis ao exercício do seu direito de defesa, certamente subverte a ordem jurídica constitucional, constituindo puro cerceamento de defesa, o que acarreta nulidade absoluta ao procedimento por violação aos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
Aliás, pensamos ainda que nem se poderia cogitar de se aplicar no procedimento administrativo testilhado a pena de confissão fática a representado que apresenta a defesa no prazo decenal previsto no artigo 195 do E.C.A., sem adentrar ao mérito da representação, eis que a própria Lei 8.069/90 em seu artigo 195 fala em defesa e não em contestação, bem assim o ECA não exige expressamente a necessidade de discussão do mérito em tal defesa, e se fosse assim, deveria expressamente ter feito menção expressa a isso em seu artigo 195, a exemplo do que ocorre com a Lei 5.869/73 (C.P.C.), que em seu artigo 300 expressamente dispõe competir ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o direito do autor. Destarte, não se olvide que o CPC é subsidiário ao ECA somente no que concerne às normas gerais (art. 152 ECA), quanto ao seu Sistema Recursal (art. 198 ECA) e quanto à Proteção Judicial dos Interesses Individuais Difusos e Coletivos (art. 212, Parágrafo 1º).
Admitir o contrário seria revolver a aplicação do abolido instituto da verdade sabida outrora adotado no nosso Direito Administrativo, pois, bastaria ao Juízo conhecer a infração através do seu respectivo auto e por presumi-lo legítimo em razão de se consubstanciar em ato administrativo, julgar o representado, sem a ele conceder qualquer oportunidade de defesa efetiva com a produção das provas que o representado entendia imprescindíveis para sua defesa.
Para Hely Lopes Meirelles6, verdade sabida “é o conhecimento pessoal da infração pela própria autoridade competente para punir o infrator ”.
Este instituto não mais prevalece em nosso direito, por força do disposto no artigo 5º, inciso LV da Constituição da República que impôs a obrigatoriedade do contraditório na aplicação de sanções.
O assento constitucional do princípio do contraditório e da ampla defesa, disposto no art. 5º, inciso LV, da Carta Magna pátria, torna imperiosa a abolição do instituto da verdade sabida, autorizando a concluir que no processo judicial, bem como no processo administrativo é imprescindível a garantia do contraditório e da ampla defesa, possibilitando aos litigantes, o contraditório que abarca não só a garantia de ciência e de participação, como possibilita uma efetiva igualdade processual, ao conferir as partes, “a par conditio” ou paridade de forças dentro da relação processual, enquanto que a ampla defesa abrange o direito à autodefesa, possibilitando ao litigante ser ouvido, apresentando sua versão para os fatos, tendo direito à prova, seja produzindo-a ou fazendo contraprova.
Com precisão Romeu Bacelar Filho citado por Celso Antonio Bandeira de Mello, afirma que:
“Formou-se um consenso doutrinário acerca da inconstitucionalidade da verdade sabida. A Constituição de 1988 exige, incondicionalmente, o processo (procedimento em contraditório) para aplicação de sansão disciplinar de qualquer espécie e seja qual for o conjunto probatório, que a administração pública disponha para tanto”.
Em que pese haver alguns arestos albergando esta postura teratológica de julgamento antecipado, cerceando em absoluto o exercício do direito de defesa dos representados, sob o falacioso argumento de autoridade de que o auto de infração é ato administrativo e, portanto, tem presunção de legitimidade, a qual não poderia ser elidida através da discussão da existência ou não de conduta do representado por ocasião de audiência de instrução, consoante colaciona-se abaixo, para nós tal posição viola o princípio constitucional da irresponsabilidade objetiva.
"Infração administrativa - Argumentos do recorrente não suficientes para elidir a presunção de legalidade que reveste o auto de infração - Infração que se consuma com a mera ocorrência das condutas tipificadas em lei" (TJSP, AP. 29.825-0, rel. Prado de Toledo).
"O art. 80 do ECA não requer que os destinatários das normas de proteção participem do jogo, bastando que entrem e permaneçam no local destinado ao jogo de bilhar, sinuca ou congênere; essa singela inobservância, sem o imperativo de investigar-se o elemento subjetivo (dolo ou culpa), configura a infração do art. 258 do referido estatuto" (RT 738/275).
“Estatuto da Criança e do Adolescente. Infração administrativa. Requisitos. Auto de infração. Presunção de veracidade. Aplicação de multa. Presentes os requisitos configuradores da infração administrativa, pela conduta típica prevista no art. 249 do ECA, devida é a aplicação de multa, se a presunção de veracidade do Auto de Infração não fora elidida pelo autuado. Preliminar rejeitada e apelo improvido”. (TJMG, 6ª Câm. Cível, Ap. Cível n. 1.0000.00.271746-0/000, j. 31/3/2003, pub. 19/9/2003, dec. unân., rel. Des. Célio César Paduani). (grifo nosso)
Desta forma, entendemos que pensar que o auto de infração por presumir-se legítimo não pode ser elidido por mera prova testemunhal fática, constitui sim ofensa ao contraditório e à ampla defesa, posto que o auto de infração é feito com base na interpretação dos fatos, e os fatos podem ser questionados por qualquer espécie de prova permitida em direito. Ademais, consoante a dicção do artigo 152 do ECA, em nosso sentir, não é aplicável ao presente procedimento o instituto do julgamento antecipado da lide previsto no artigo 330 do CPC, o qual tem guarida tratando-se de litígio que verse questão exclusivamente de direito, ou desde que versando matéria de fato e de direito, a matéria fática não dependa de prova.
Ora, mesmo no sistema do Código de Processo Civil, só há julgamento antecipado da lide quando a matéria fática não dependa de prova, sendo assim não se poderia sustentar que o auto de infração que embasa a representação ministerial independe de prova pelo fato de não ser passível de questionamento diante da presunção de legitimidade que lhe é inerente, pois, além de tal presunção ser relativa, o meio probatório para aduzir fato extintivo ou impeditivo do direito do representante é livre, daí por que infere-se ser perfeitamente possível elidir-se a presunção por prova exclusivamente testemunhal, tudo avaliado em cada caso concreto.
Como se não bastasse o supracitado, os artigos do E.C.A. que prevêem sanção pecuniária em salários de referência perderam o fundamento de validade com o advento da Constituição Federal de 1988, sendo proibida sua conversão em salário mínimo, eis que o artigo 7º, inciso IV da Constituição da República, veda em absoluto a vinculação do salário mínimo para qualquer fim, o que faz com que a única exegese possível para hipóteses semelhantes, em caso de condenação seja a adoção do último salário de referência, atualizado para a época da infração, sob pena de o magistrado majorar a sanção prejudicando o infrator sem expressa previsão legal, o que violaria o princípio constitucional da legalidade insculpido no artigo 5º, inciso II da Carta Magna, mormente quando se sabe que antes do advento do ECA, a Lei 7.789/89 extinguiu o salário mínimo de referência e que à época (maio/1989), enquanto o salário mínimo de referência tinha o valor de NCz$46,80, o salário mínimo, na mesma época, era de NCz$81,40, ou seja, quase o dobro daquele.
A correta interpretação desta disposição constitucional, por outro lado, já foi dada pelo Colendo Supremo Tribunal Federal em v. aresto cuja ementa é a seguinte:‑ “O artigo 7º, IV, DA Constituição de 1988 dispõe que é vedada a vinculação do solário mínimo para qualquer fim. Essa norma tem, evidentemente, caráter de vedação absoluta, tendo em vista que sua finalidade foi, precipuamente, a de não permitir que, sendo ele utilizado como parâmetro indexador de obrigação de qualquer natureza, se criassem dificuldades para os aumentos efetivos do valor deste pela extensão de seu reflexo ocasionado por essa utilização"8
Tal posicionamento também foi adotado no venerando aresto da lavra do Eminente Des. Cunha Camargo, destaca que “por expressa disposição legal, o salário de referência, ou seja, o último conhecido é devido com correção pelos índices oficiais até a data do pagamento" (Ap. Cível n.º 15.885‑0/2, de 3.II.1994, Santos).
É forçoso registrar-se que este entendimento sempre foi observado perante o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo: Na Apelação Cível n.º 17.856 (julg. em 30.XII.1993), Relator o E. Des. Sabino Neto, foi determinada a observância do salário de referência, atualizado para a data do pagamento; na Ap. Cível n. 19.820‑0/6, de Dracena (julg. em 19.I.1950), Relator Des. Dirceu de Mello, foi considerada a aplicação do salário mínimo como erro material e, de ofício, determinada a sua correção para o último salário de referência, atualizado pelos índices oficiais; na Apelação Cível n.º 44.818.0/5, de Amparo (julg. em 22.X.1998), o E. Des. Cunha Bueno também determinou que a sanção fosse ajustada ao salário de referência, nos termos da cominação legal e da jurisprudência da Câmara; nas Apelações Cíveis nºs. 16.980‑013, de Jales (julg. em 4.VII.1994) e 18.472.0/0, de Marília (23.VI.1994), ambas relatadas pelo Relator Des. Sérgio Augusto Nigro Conceição, o entendimento foi idêntico, porquanto a aplicação do salário mínimo “importaria em permitir ao magistrado a alteração de sanção, a dano do infrator, sem expressa previsão legal...”.
NOTAS:
[1] ISHIDA, Valter Kenji, Estatuto da Criança e do Adolescente. Doutrina e Jurisprudência, 5ª Edição, Editora Atlas, 2004, pág. 342.
[2] TJMG.Apelação Cível nº 1.0701.03.026079-1/001. Rel.Des. GERALDO AUGUSTO. J.24/02/2005.
[3] (TJSP. Apelação Cível n. 20.886-0 – Relator: Yussef Cahali – j. 24/11/94).
[4] Informativo STJ. Brasília, 16 a 20 de outubro de 2006 – Nº 0301. REsp 602.062-SC, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 19/10/2006
[5] CARRIDE, Norberto de Almeida. Estatuto da Criança e do Adolescente – Anotado, Editora Servanda, Campinas/2006.
[6] MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro. 32 ed. São Paulo, Malheiros, 2006, p. 697.
[7] MELO, Celso Antônio Bandeira, Curso de Direito Administrativo. 20 ed. São Paulo, Malheiros Editores, 2006, p. 808.
[8] (RE n.º 212.625‑0, SP, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, j em 7.XII.99).






