Dia de atendimento inicial (triagem). Dia frio, 13 graus, choveu pela madrugada. Certamente muitos que ali se encontravam amargaram desde as 6 da manhã na fila, do lado de fora da unidade, esperando para ter seu caso ouvido e, se tudo der certo, resolvido.
Dentre os mais diversos casos, de execução de alimentos a indenizações, o primeiro caso diferente foi o de uma mãe, que faz uso problemático de crack, que deseja se internar voluntariamente em clínica para largar o uso do entorpecente. Foi encaminhada por Conselheiro Tutelar para que passasse a guarda dos três filhos para a avó materna, a fim de que seus interesses permanecessem resguardados enquanto estiver em recuperação. A designação de conciliação na própria Defensoria Pública teria de ser célere, pois a internação se dará na semana que vem. Assim foi agendado. Recebi da senhora que a acompanhava – igualmente envolvida em circuito de rua e em uso problemático de crack – um cumprimento de mãos que certamente não combinava com a figura de um engravatado. Fiquei contente.
Outro caso, uma pessoa transexual desejava nova via do alvará de soltura que havia sido expedido no bojo de processo criminal, pois estava com receio de comparecer ao Poupatempo e ter algum problema em decorrência dessa “passagem”. Documentação, infelizmente, ainda referente a seu nome de registro, que lhe causa constrangimento. Na Defensoria Pública respeita-se o nome social, mas em quantos lugares isso não é feito… Sugeri a possibilidade de realizar a alteração do nome de registro.
Ela se interessou, mas não hoje. Hoje ela só queria o alvará.
Terceiro caso: uma mãe reclama que recebeu via WhatsApp e Facebook fotos de seu filho, adolescente, com escrito de “procurado”. Segundo consta, a polícia, e até mesmo um Vereador, estariam disseminando a foto do garoto em redes sociais indicando-o como “autor de roubos nas redondezas”. Expedimos ofícios cobrando explicações e alertando para a infração administrativa do art. 241-A do ECA. Com o retorno será o caso de verificar a propositura de ação indenizatória e/ou de responsabilização administrativa.
O último caso do atendimento inicial consistiu no comparecimento de 18 famílias noticiando que residem em terreno ocupado do Município e que estariam sendo expulsos do local por agentes da Prefeitura e por Policiais Militares. Segundo a versão apresentada, os Policiais Militares teriam tentado, no último domingo, expulsar as famílias – com idosos, crianças, pessoas doentes e uma grávida – do local, ainda que embaixo de forte chuva e em temperatura baixa. Teria havido retenção de documentos pessoais e depredação de portas e janelas, pois se eles não ficariam ali por muito tempo, não teria o porquê tê-las. Um policial teria dito, em relação ao bairro relativamente nobre em que se encontravam, que aquele não ela local para “gente desse tipo”.
Aparentemente por não existir ordem judicial para desocupação, foram expedidos diversos ofícios solicitando informações, bem como ao Comando do respectivo Batalhão da Polícia Militar, Ministério Público, Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria, além de outras providências. Foi nomeada uma representante da comunidade para centralizar as diligências. Contei com uma bela força tarefa dos estagiários para conseguiremos bem atender o caso.
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Já no fórum, audiência criminal de um sujeito acusado de tráfico de drogas. Mais de 40 anos de idade, apenas uma passagem anterior por tráfico em que havia sido absolvido. Em audiência ele se confessou usuário de mesclado (mistura de maconha com cocaína), mas negou a traficância, dizendo que estava no local para uso pessoal e que quando a polícia chegou o vendedor fugiu. Acabou preso por tráfico, apesar de ter bradado inocência. Na ocasião ele teria ouvido de um dos policiais que “se for mesmo inocente vai ser solto na custódia. É dia de operação, a gente precisa fazer lousa”.
Em juízo, os policiais entraram em contradição, nenhum deles disse ter visto, efetivamente, algum ato de comércio da droga, sendo que nenhum dinheiro teria sido apreendido com o acusado. Encontrado com poucas porções de maconha e cocaína e nenhum dinheiro? Sim. Então o que foi vendido e a troco de que? Confirmaram que se tratava de dia de operação. A Promotora de Justiça pediu a absolvição, o que obviamente acompanhei.
Enfim, na sala de apoio da Defensoria Pública dentro do fórum, um senhor me procura dizendo que possui um filho com aproximadamente 7 anos, autista, e que há 2 semanas havia comparecido na Defensoria Pública para estipular a guarda, tendo em vista que é recém separado de sua ex-esposa. Logo após ter sido marcada a data de conciliação e ter notificado a ex-esposa a comparecer, veio a saber que ela fugiu para outro estado com a criança.
Ele estava desesperado, pois seu filho realizava todos os tipos de acompanhamento possível em educação e saúde neste Município e, com ele nesse outro estado, em uma cidade minúscula, certamente não teria qualquer apoio. Tentou obter a guarda judicialmente, mas com a criança em outro estado a situação se complica, pois a competência para apreciação do caso é a de domicilio do responsável pela criança e, logo após, onde ela se encontra.
Apresentei para ele a possibilidade de, excepcionalmente – eis que a Defensoria Pública local nomeia advogado do convênio com a OAB para esse tipo de ação –, distribuirmos a ação de guarda, argumentando que o local de permanência atual da criança não se tratava de seu domicilio. Quem sabe, com isso, convencêssemos o juiz a permanecer o processo por aqui. Na pior das hipóteses o processo seria remetido para a Bahia, mas ao menos já teria se inaugurado.
A reação do pai foi de embrulhar o estômago. Se debulhou em lagrimas e me deu um abraço.
Por fim, aparece uma moça na porta da sala pedindo informações a respeito de seu marido que havia sido julgado há pouco. Era justamente sobre o caso que eu mencionei anteriormente. Em consulta ao sistema do TJSP verifiquei que a sentença acabara de sair: absolvido! Dei a informação para a senhora que também se debulhou em lagrimas e me deu um abraço ainda mais apertado e demorado, agradecendo muito e tomada de alegria.
Hoje foi um dia típico na Defensoria Pública, cheia de altos e baixos emocionais: em um momento você se retorce de indignação, em outro de esperança, logo após tristeza e em seguida de alegria.
Hoje foi um dia atípico na Defensoria Pública, um dia em que o número de conclusões positivas superou o de negativas.
Giancarlo Silkunas Vay é Defensor Público no Estado de São Paulo.