O direito à saúde é uma das principais garantias da Constituição Federal de 1988 e um dos pressupostos básicos da dignidade humana. O atendimento a qualquer cidadão não pode ser impedido nos órgãos de saúde pública, mesmo que a pessoa não tenha casa ou documentos. Pelo contrário, as leis brasileiras estabelecem que qualquer pessoa tenha direito “humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, de estado de saúde, anomalia, patologia ou deficiência”. Entretanto, o preconceito é ainda o maior impedimento para que os moradores de rua possam ser atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Para Maria Lucia Santos Pereira, coordenadora do Movimento Nacional da População de Rua, ele é um dos principais fatores que impedem o atendimento a parte da população.
“O preconceito vem justamente pelo desconhecimento de quem somos nós. As pessoas não conhecem quem é a população de rua. Primeiro, porque eles imaginam que a gente está em situação de rua porque deseja. Segundo porque imaginam que na rua só tem vagabundo, marginal e dependente químico, mas não é esse o caso”, argumentou em entrevista ao Bahia Notícias. “A população em situação de rua não consegue acessar pela porta da frente dos postos de saúde, ainda existe um desconhecimento e preconceito para o atendimento à população de rua. Acontece também que não existe uma conversa entre assistência social e a saúde. Se nós encaminhamos uma pessoa para um atendimento dentro de um hospital, depois da saída, ele não tem para onde ir”.
Apesar de já existir uma grande mobilização e sensibilização dos gestores públicos para dar cumprimento à Portaria 3.305, de dezembro de 2009, do Ministério da Saúde (que institui o Comitê Técnico de Saúde para a população em situação de rua), é frequente o recebimento de relatos de agentes de saúde pública que se recusam a atender os moradores de rua, de acordo com a defensora pública Fabiana Almeida Miranda, coordenadora de uma equipe multidisciplinar que atende a essa parcela da população. “O atendimento a pessoas em situação de rua melhorou bastante, mas ainda há muito preconceito dos profissionais com a população de situação de rua. Há relatos de que os profissionais de saúde se recusam a atender a pessoa por estar suja, por estar esfarrapada, sem banho”, afirmou. “Nós recebemos muitas denúncias de pessoas em situação de rua que não estavam conseguindo acessar o SUS por falta de documentação, falta de acesso ao cartão único de Saúde, porque estavam exigindo o cartão para se promover o direito à saúde. A gente tem conseguido garantir o acesso à saúde dessas pessoas, mesmo sem endereço, mesmo sem documentação, mesmo sem o cartão, através de ofícios, através de articulação da rede”.
Somente no primeiro semestre deste ano, a Defensoria Pública da Bahia registrou 2.590 atendimentos à população em situação de rua, e a maioria delas buscava a regularização de seus documentos, item fundamental para que possam ter uma assistência médica continuada. Os problemas com a documentação são resolvidos facilmente pela Defensoria, que solicitam a segunda via das certidões de nascimento dos cartórios, para dar início à retirada de RG, CPF e outros documentos. Já para garantir o atendimento em casos de emergência, quando as pessoas não têm documentos, a Defensoria tem buscado alternativas extrajudiciais e tem feito tratativas com a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador (SMS) para estabelecer um fluxo de atendimento que esteja em consonância com a Portaria do Ministério da Saúde.
Segundo com a diretora geral de atenção à saúde da SMS, Luciana Peixoto, atendimentos de urgência e emergência podem ser realizados sem a necessidade do cartão do SUS. No entanto, a legislação vigente exige o documento para atendimentos de média complexidade, o que exigiria apresentação de um comprovante de residência.
Ainda assim, com apoio da Defensoria Pública, o órgão tem emitido o cartão SUS para a população em situação de rua, que não possui residência fixa. “Diante da legislação do SUS, para atendimento de média complexidade, que é pago por tabela SUS, a lei exige o cartão. Nosso problema é só garantir uma forma de fazer o cartão. A gente agora já tem isso. A Defensoria recebe o nome do morador, gera um termo, e a gente faz o cartão”, explicou. Luciana ainda ressaltou o trabalho da SMS nos chamados Consultórios de Rua, programa que faz parte da Política Nacional de Atenção Básica.
“Existem consultórios no Centro Histórico, Barra, Sete Portas e na região de Itapagipe. Essas equipes trabalham na rua, procurando pessoas em situação de rua, avaliando a saúde, procurando dar assistência de atenção básica”. No entanto, a representante da pasta reconheceu que o atendimento não resolve o problema de pessoas que necessitam de um atendimento de média complexidade, o que também é argumento de Maria Lúcia nas lutas pela população de rua. “Se um morador em situação de rua precisa fazer o primeiro atendimento, funciona. Mas, se ele precisar de um exame, pega com o problema do cartão do SUS”, disse.
O grupo coordenado por Fabiana Miranda é formado por profissionais e estagiários de direito, assistência social e psicologia, através de convênios firmados com universidades. Desta forma, segundo ela, é possível dar uma atenção integral aos assistidos para promover os direitos humanos dessas pessoas. A defensora ainda diz que cresceu a busca de pessoas em situação de rua pelos serviços oferecidos pela Defensoria, seja individualmente, ou conduzido pela prefeitura ou pela rede de pessoas em situação de rua. A defensora estima que a população de rua de Salvador seja superior a três mil pessoas, como levantado nos anos de 2006/2007. Atuante na defesa dos moradores de rua, Fabiana diz que atualmente não se observa um quadro de “higienização sistematizada, contínua e até padronizada” que se observava no período pré-Copa do Mundo em Salvador. “Hoje não temos visto isso, mas a gente continua atendendo casos de violências institucionais, cometidos por agentes de segurança pública, mas não temos visto essa higienização sistematizada que ocorreu na Copa”, declarou. Ela ainda avalia que a rede de acolhimento de moradores de rua melhorou, mas ainda não é o ideal. “Não se pode falar que elas estão em situação de rua porque querem, pois ainda não há unidades de acolhimento disponíveis e suficiente para todos. Muitas ainda não conseguem abrigo e nem auxílio moradia”, pontuou Fabiana. A defensora tem se reunido com frequência com a Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza (Semps) para discutir os problemas da população de rua.
O preconceito ainda é o maior empecilho para que os direitos dos moradores de rua sejam garantidos. “Temos uma sociedade que pede ao gestor público que tire as pessoas em situação de rua da frente delas, que tirem da frente do colégio delas, da frente do prédio delas, e que se coloque em qualquer lugar, longe da vistas delas, sem pensar no que é melhor para essas pessoas ou em promover os direitos, a dignidade dessas pessoas” finalizou.