Lei de acesso à informação: análise sistêmica
Rogério Devisate é Defensor Público junto ao STF e STJ e Associado ao IBAP ? Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.
INTRODUÇÃO
A pretendida análise da lei de acesso à informação exige que se a coteje com o decreto que a regulamentou e com os balizamentos constitucionais de onde nasceu.
A transparência é sempre desejável mas é importante que se compreenda o objeto e alcance da novel norma, numa análise sistêmica e considerando-se o que efetivamente foi debatido e votado pelo Congresso Nacional (PL 219/2003), de sorte que se tenha uma atuação nos limites da lei.
PROJETO DE LEI (PL219/2003) E REDAÇÃO DA LEI 12.527/2011
São “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoa” e é por isso que a lei de acesso à informação (Lei 12.527/11) protege a intimidade e a vida privada (art. 31) e reforça tal comando ao considerar ilegal (art. 32) a divulgação de dados pessoais afins, prevendo ainda a necessidade de “autorização” da pessoa quanto à informação sobre sigilo (art. 31, P. 1º., inciso II), cabendo aqui observação anteriormente feita por Uadi Lammêgo Bulos (in Constituição Federal Anotada, ed. Saraiva, p. 146), no sentido de que o constituinte seguiu o exemplo “da Alemanha, da Argentina, do Chile e dos Estados Unidos da América. Esses Países também perceberam que a evolução tecnológica propicia uma devassa da vida particular dos indivíduos, merecendo, por isso, amparo constitucional” (grifamos).
O Projeto de Lei (PL 219/2003), de autoria do Deputado Reginaldo Lopes, assim está ementado: “Ementa: Regulamenta o inciso XXXIII do artigo 5º da Constituição Federal, dispondo sobre a prestação de informações detidas pelos órgãos da Administração Pública”. Ademais, regulou o previsto no inciso II, do Parágrafo 3º., do art. 37 e o Parágrafo 2º., do art. 216, ambos do texto constitucional, modificou em parte a Lei 8112/90 e a Lei 8159/91 e revogou a Lei 11111/05.
Com isso, nasceu um texto legal com propósitos muito claros e específicos, notadamente quanto à forma de se acessar as informações das quais cuida, como os aspectos e temas que aqui destacamos: (A) a classificação e os prazo de sigilo dos documentos públicos, ora tratando do prazo de 25, 15 ou 5 anos (arts. 23 e 24), inclusive prevendo que há documentos que dizem respeito “à intimidade e vida privada” e que poderão ter seu acesso restrito por até 100 (cem) anos (arts. 31, Parágrafo 1º., Inciso I); (B) reforça que é “dever do Estado controlar o acesso e a divulgação de informações sigilosas” (art. 25 c/c Art. 22) e que é conduta ilícita “divulgar ou permitir a divulgação ou acessar ou permitir acesso indevido à informação sigilosa ou informação pessoal” (art. 32, Inciso IV), protegendo a intimidade e a vida privada (art. 31) e configurando como improbidade administrativa do agente público civil ou militar o descumprimento dos regramentos que estabelece (art. 32, Parágrafo 2º); (C) o pedido de acesso a informações (art. 10) poderá ser feito por “qualquer interessado”, “devendo o pedido conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida” (artigos 10 usque 14) – o que não corresponde à exibição de dados na internet, previsto no regulamento (Decreto 7.724/2012) e que em tese contraria frontalmente o texto legal (e talvez leve o aplicador a ferir o teor do art. 198, do CTN e/ou do art. 325, do Código Penal) – sendo as questões afetas ao procedimento de acesso reguladas do citado art. 10 ao art. 14; (D) a lei 12.527/2011 aplica-se (1) aos órgãos da Administração Direta dos três Poderes, incluindo as Cortes de Contas, o Judiciário e o Ministério Público, (2) e às autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, (3) às ONGs e entidades “privadas sem fins lucrativos que recebam” recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais (acrescentamos, por pactos feitos após aprovação do plano de trabalho de que trata o art. 116, da Lei das Licitações) – sendo que, para as últimas, a publicidade limita-se “à parcela dos recursos públicos recebidos e à sua destinação”, independentemente das contas a serem prestadas, devendo suas “normas gerais” (art. 45) ser seguidas nas leis específicas dos Estados, Distrito Federal e Municípios, o que nos leva a concluir que o Decreto 7724/2012 só se aplicaria aos órgãos Federais e apenas do Executivo (art. 1º), respeitada a repartição constitucional de competências; (E) não poderá ser negado o acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais (art. 12), não se podendo restringir acesso ao que corresponder violação dos direitos humanos envolvendo agentes públicos (Parágrafo Único, do art. 21); (F) é cuidadosa ao prever que “não exclui as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça” (art. 22 c/c art. 25); (G) dos procedimentos de classificação, desclassificação e reclassificação (art. 27 e outros) e dos recursos a respeito (arts. 15 usque 20); (H) da instituição da Comissão Mista de Reavaliação de Informações e o Núcleo de Segurança e Credenciamento (arts. 35 usque 47); (I) sobre o acesso às informações e sua divulgação ainda consta previsão nos artigos 6º usque 9º onde, dentre outros detalhes, está previsto que os órgãos e entidades do poder público, a respeito, devem observar “as normas e procedimentos específicos aplicáveis” para proteger a “informação sigilosa e da informação pessoal”, observada a “restrição ao acesso” (art. 6º, caput c/c Incisos II e III), nada havendo na lei sobre os ganhos e vencimentos de servidores (art. 7º., caput e Incisos I usque VII e seus seis parágrafos), constando obrigação de divulgação de “informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas”, incluindo os repasses ou transferências de recursos financeiros (art. 8º, Caput c/c Inciso II), preceito que vai no mesmo sentido do teor do Inciso II, do art. 3º., mas que s.m.j. não se confunde, ao nosso sentir, com o pagamento de vencimentos ou afins, que não correspondem a repasses ou transferências.
Portanto, em resumo, a lei não cuidou da divulgação de quaisquer ganhos dos servidores (salários etc) e muito menos na “internet” (o que, aliás, contrariaria o art. 10, que exige pedido do interessado, com sua identificação e especificação da informação requerida), do mesmo modo que não derrogou as demais regras que protegem o sigilo e a intimidade, aspectos que, aliás, também protege (art. 22 c/c art. 25).
IMPROBIDADE E OUTRAS SANÇÕES PREVISTAS NA LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO E O DEVER DE PROTEÇÃO DAS INFORMAÇÕES
A lei não deve gerar desequilíbrio, mas imaginemos que, num processo judicial, litiga um servidor que ganha mil reais e um particular que ganha cem vezes mais. Para se obter informação sobre ganhos etc o primeiro terá de requerer judicialmente o que o outro poderá acessar na tela do computador? Certamente, isso criaria um odioso desequilíbrio, quiçá ofendendo em alguns casos ao princípio da paridade de armas, previsto no art. 125, I, do CPC.
Mas não é só isso, é que o artigo 325, do Código Penal, prevê que é crime “revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação”, enquanto o CTN, em seu art. 198, prevê infração decorrente da divulgação, “para qualquer fim, por parte da Fazenda Pública ou de seus funcionários, de qualquer informação, obtida em razão do ofício, sobre a situação econômica ou financeira dos sujeitos passivos ou de terceiros e sobre a natureza e o estado dos seus negócios ou atividades”!
A propósito, notemos que a própria lei prevê (art. 32), dentre outras situações captuladas como “condutas ilícitas”, “divulgar ou permitir a divulgação ou acessar ou permitir acesso indevido à informação sigilosa ou informação pessoal” (art. 32, Inciso IV), acrescentando que se deve respeitar a intimidade a vida privada (art. 31) e que pode vir a se configurar a improbidade administrativa do agente público civil ou militar que descumprir os seus regramentos (art. 32, Parágrafo 2º)!
ONDE A PREVISÃO DE EXPOSIÇÃO DOS SALÁRIOS? DECRETO PRESIDENCIAL, LIMITES À ATIVIDADE REGULAMENTAR
Em 16 de maio do corrente foi editado pela Presidência da República o Decreto . 7.724/2012, assim ementado: “Regulamenta a Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011, que dispõe sobre o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do caput do art. 5º., no inciso II do Parágrafo 3º, do Art. 37 e no Parágrafo 2º., do Art.216 da Constituição”.
O comentado Decreto não poderia representar uma substituição do Executivo à atividade do Legislativo, mas apenas, como anuncia em sua Ementa, “regulamentar a Lei 7.724/2011”, sob pena de se ferir o pacto federativo e de assim se desrespeitar o art 2º., da Carta Política de 1988. Além disso, concluímos, por hipótese e salvo melhor juízo, que numa interpretação elástica tratou a remuneração (em geral) dos servidores – em sítios na Internet - como informação de interesse coletivo ou geral (Caput do art. 7º, Parágrafo 3º., inciso VI, do decreto, não da lei).
Assim, diante da Lei 12.527/2011 e do Inc. X, do art. 5º, da CF, como já dito permanecem absolutamente “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”, sendo ilegal (art. 32) a divulgação de dados pessoais, prevendo ainda a necessidade de “autorização” da pessoa quanto à informação sobre sigilo (art. 31, P. 1º., Inciso II).
Notemos que o tema se torna mais árduo na medida em que inegavelmente tem reflexos políticos para a sociedade, que anseia, naturalmente, por informações afins e, por isso, não é demais colorir pensamentos nossos com abordagem capaz de nos levar a reflexões mais amplas e profundas e, para tanto, ousamos citar aqui breve trecho do livro intitulado “A Alma Imoral”, de Nilton Bonder, in verbis: ... “caso houvesse unanimidade na condenação do réu o julgamento era desqualificado e este liberado. O sentido de tal lei, expressão da alma e obviamente subversiva, é a desconfiança de que um processo possa ser tão bem conduzido que não paire qualquer dúvida quanto a uma leitura diferente da situação.” ... “A opinião pública, os dogmas, as convenções, a moralidade e as tradições podem muitas vezes querer representar uma unanimidade que os desqualifica como determinadores do que é justo, saudável e construtivo”... (trechos destacados).
Mas, num regime democrático, por sorte o foco de pensamento pessoal não é o único oxigênio a alimentar a chama das decisões políticas e longe se vão os anos da ditadura. Não raro, surgem propósitos de disciplinar cada detalhe da vida das pessoas, levando-nos a suportar uma coerção permanente (também na tv, moda etc), por vezes exteriorizados pelo exercício do pequeno poder, como tão bem expressado por Michel Foucault (in Vigiar e Punir, ed. Vozes, 1999). Aliás, a respeito a história tem vários exemplos, tão notórios quanto sombrios.
Notemos que o nosso sistema constitucional garante a inviolabilidade da intimidade da vida privada, seguindo o exemplo de outros países, ante a devassa da vida particular que a evolução tecnológica propicia (Uadi Lammêgo Bulos, lição e obra já citados) e que o Estado evoluiu da posição de adversário dos direitos fundamentais para a de garantidor ou guardião desses mesmos direitos (Ministro Gilmar Ferreira Mendes, in Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, ed. Saraiva, p.120).
Assim, como o citado Decreto é apenas um regulamento da lei (art. 1º), portanto sem a natureza de “lei formal”, não pode impor obrigações a terceiros, por mais louvável até que seja a intenção (o que aliás é o entendimento contido no voto do Ministro Cezar Peluzo, na ADI 3239, em curso no Supremo Tribunal Federal – STF, onde estava em julgamento o Decreto 4.887/2003).
Os regulamentos, sabemos, “não podem por si só originar obrigações ou deveres” (como ensinam os espanhóis Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez, in Curso de Derecho Administrativo, traduzido para o português por Arnaldo Setti e publicado pela ed. RT sob o título Curso de Direito Administrativo, 1991, p. 228 – n.g.) e, no mesmo sentido, José dos Santos Carvalho Filho (in Manual de Direito Administrativo, 8ª. ed., Lumen Juris, p. 36/37), dizendo que “não podem os atos formalizadores criar direitos e obrigações”(destacamos e grifamos).
Curioso ainda perceber que sempre se questionou a prática de governar por “decreto-lei”, própria da chamada ditadura nacional! Contudo, não se ouviu ecos de protesto contra o status do decreto em comento quando dispôs sobre temas tão sensíveis.
Outro aspecto importante é que a lei prevê que o pedido de acesso a informações poderá ser feito por “qualquer interessado”, mas que deve a sua pretensão conter o pedido com a “de identificação do requerente e a especificação da informação requerida” (artigos 10 usque 14), o que naturalmente não se coaduna com a exposição na internet, estando o procedimento regulado do citado art. 10 ao art. 14.
De se notar, também, que não se excluiu as hipóteses legais de “sigilo e de segredo de justiça” nem outras hipóteses de reserva, segredo ou situações protegidas em outras leis (art. 22 c/c art. 25), prevendo que é “dever do Estado controlar o acesso e a divulgação de informações sigilosas” (art. 25 c/c art. 22) e que é conduta ilícita “divulgar ou permitir a divulgação ou acessar ou permitir acesso indevido à informação sigilosa ou informação pessoal” (art. 32, Inciso IV), dispondo que se deve respeitar a intimidade e a vida privada (art. 31) e que se configurará improbidade administrativa do agente público civil ou militar que descumprir os regramentos que estabelece (Art. 32, Parágrafo 2º).
Merece destaque que a lei, ainda, exige “autorização” da pessoa quanto à informação sobre sigilo (art. 31, P. 1º., Inciso II)!
Por fim, fica uma dúvida decorrente do fato de que a LDO/2013 em 20 de agosto sofreu vetos e que um desses foi exatamente sobre pretensão de se normatizar a divulgação dos dados que estariam sob o pálio da lei do acesso à informação, notadamente para as estatais e empresas públicas (consulta no site da Câmara dos Deputados, em http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/ADMINISTRACAO-PUBLICA/424435-LDO-E-SANCIONADA-COM-VETO-INTEGRAL-AS-METAS-ELABORADAS-PELO-CONGRESSO.htmll. Qual o motivo?
Ademais, 2ª Turma do E. Superior Tribunal de Justiça - STJ, ao julgar em idos de 2002 o RMS 14.163, sob a Relatoria da Ministra Eliana Calmon, por unanimidade decidiu que “a remuneração dos servidores públicos está prevista em lei, com publicidade ampla” e que “não pode o cidadão ter acesso à intimidade de cada servidor”, constando do Voto da Relatora que “a remuneração individual de cada servidor é assunto a ser mantido em sigilo, em nome do princípio da privacidade de cada indivíduo.” (sublinhamos).
Pensamos que se mantém atual a r. decisão em apreço.
CONCLUSÃO
- a lei do acesso à informação não se confunde com gratuita exposição dos dados a cargo do Estado, que tem o dever primeiro de por eles zelar e de respeitar a privacidade e intimidade das pessoas, devendo por isso o interessado em informações se identificar e ficando estatuído que o agente que não observar a norma incorre também em improbidade administrativa, não havendo previsão na lei de acesso à informação da divulgação dos dados remuneratórios, o que expressamente só consta no decreto que a regulamenta;
- a Administração não dispõe da liberdade de expor quaisquer dados apenas porque estão sob sua guarda, tanto que editou a lei em comento e cuidou dos prazos, classificação etc, prevendo a necessidade de expressa autorização do interessado para obtenção dados de caráter pessoal de terceiros;
- A sociedade tem o direito de ser informada e o Estado tem o dever de atuar em absoluta observância da Constituição Federal e das leis de regência, devendo ser o primeiro a dar exemplo e respeitá-los (não correspondendo a potestade regulamentar a uma atividade sem controle ou a um “cheque em branco” e se nos apresentando um paradoxo, na medida em que há dias houve veto parcial à LDO/2013, que não permitiu a exposição dos ganhos dos que trabalham em estatais e empresas públicas).
-------------------------------------------
Referências bibliográficas:
Gilmar Ferreira Mendes - Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, ed. Saraiva;
Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez - Curso de Derecho Administrativo, publicado no Brasil pela ed. RT, sob o título Curso de Direito Administrativo, 1991;
Marco Aurélio Nogueira - Potência, Limites e Seduções do Poder, ed. Unesp;
Uadi Lammêgo Bulos - Constituição Federal Anotada, ed. Saraiva;
José dos Santos Carvalho Filho - Manual de Direito Administrativo, 8ª. ed., Lumen Juris;
Laurence Kohlberg - Psicologia Del desarrollo moral, Bilbao, De. Desclée, 1992;
Nilton Bonder - A Alma Imoral, Ed. Rocco;
Aristóteles - Coleção Os Pensadores, 1996, editora Nova Cultural;.
Michel Foucault -Vigiar e Punir, ed. Vozes, 1999.
Internet:
http://www.adperj.com.br/artigos_detalhes.asp?matID={C5465628-DEAC-4DED-A611-DFF8A951AE48}
http://www.oab-niteroi.org/noticia.php?id=10292;
http://sindsepforte.blogspot.com.br/2010/11/servidores-ganham-indenizacoes-pela.html#; http://pgesaopaulo.blogspot.com.br/2010/11/tj-paulista-manda-prefeitura-indenizar.html e sítios do STF, STJ e Câmara dos Deputados.






