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20/08/2018

ARTIGO: O conceito jurídico de pessoa com deficiência: o caso Talía Gonzales Lluy versus Equador

O presente artigo objetiva analisar o conceito de pessoa com deficiência à luz do posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos na análise do caso Talía Gonzales Lluy e outros versus Equador.

 
O mencionado caso possui sentença datada de 1º de setembro de 2015 e trouxe diversos aspectos importantes acerca do entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre temas de extrema relevância para os estudiosos e aplicadores dos Direitos Humanos, tais como o tratamento estatal que deve ser concedido às pessoas portadoras do vírus HIV, a responsabilidade das entidades privadas que prestam serviços de saúde, a possibilidade da supervisão por ricochete da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelo Sistema Interamericano, o fenômeno da discriminação interseccional, dentre outros.
 
Conforme mencionado alhures, a presente análise irá se restringir em como o caso impactou o conceito jurídico de pessoa com deficiência.
 
Talía Gabriela Gonzales Lluy nasceu em 8 de janeiro de 1995 no Equador, no seio de uma família pobre. Aos 3 anos de idade, após uma hemorragia nasal decorrente de um problema de saúde, ela foi submetida a uma transfusão de sangue em uma clínica privada de saúde, onde, por não terem sido observados os cuidados médicos necessários, acabou sendo contaminada pelo vírus HIV.
 
Ao tomar conhecimento de que a sua filha havia sido infectada com o vírus HIV, Teresa Lluy – a genitora de Talía – ajuizou algumas demandas judiciais objetivando a responsabilização do Estado do Equador, as quais restaram infrutíferas.
 
Aos 5 anos de idade, após frequentar por dois meses uma escola pública, Talía teve o seu comparecimento suspenso pelo diretor do estabelecimento educacional sob o fundamento de que não poderia continuar frequentando as aulas por ser portadora do vírus HIV. Em fevereiro de 2000, a genitora de Talía propôs uma demanda constitucional alegando privação do direito à educação de sua filha. O Poder Judiciário do Equador indeferiu tal pretensão sob o argumento de prevalência dos direitos coletivos dos demais estudantes, que estavam em colisão com os direitos individuais de Talía, uma vez que os demais alunos não poderiam sofrer o risco de contágio do vírus HIV.
 
Teresa Lluy também descreveu que teve dificuldades em conseguir emprego diante da postura preconceituosa das pessoas, que a rejeitavam ao saber que ela era mãe de uma criança portadora do vírus HIV. E mais: que sua família foi obrigada a mudar de residência diversas vezes devido à exclusão a que eles foram submetidos pela condição de Talía.
 
A exclusão do núcleo familiar da criança foi visualizada em diversos aspectos, tais como trabalho, educação, habitação e saúde. E o Estado do Equador não tomou as medidas necessárias para garantir àquela família o acesso aos seus direitos sem discriminação.
 
Percebe-se que a discriminação sofrida por Talía foi fruto de um estigma gerado por sua condição de pessoa vivendo com o vírus HIV, acarretando um quadro de exclusão social dela e de seus familiares, que passaram a viver em um estado de permanente angústia e insegurança.
 
Diante do quadro de desrespeito ocorrido com Talía e sua família, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou o Estado do Equador internacionalmente responsável por violações aos direitos humanos de Talía à vida, à integridade pessoal e à educação.
 
No que tange ao conceito de pessoa com deficiência, a Corte Interamericana, no caso sob análise, equiparou uma pessoa portadora do vírus HIV à condição de pessoa com deficiência, nos termos da Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência.
 
A referida equiparação se deu pelo reconhecimento do histórico de exclusão a que comumente os portadores do vírus HIV/AIDS são submetidos, invocando-se, para tal, o modelo social de conceituação de pessoa com deficiência, que leva em consideração não apenas os aspectos físicos da pessoa, mas também o contexto social em que ela está inserida (se ela pertence a uma sociedade que a inclua ou que a exclua) e a existência ou não de barreiras que impeçam o exercício dos seus direitos. Nas palavras da Corte:
 
A Corte observa que as pessoas com HIV têm sido historicamente discriminadas por causa das diferentes crenças sociais e culturais que criaram um estigma em torno da doença. Desta forma, uma pessoa que viva com HIV / AIDS, ou mesmo a mera suposição de que ela tem, pode criar barreiras sociais e comportamentais para que ela exerça os seus direitos em condições de igualdade com os demais. A relação entre esses tipos de barreiras e as condições de saúde da pessoa justifica a utilização do modelo social de deficiência como uma abordagem relevante para avaliar o alcance de alguns dos direitos envolvidos no presente caso.
 
Como parte da evolução do conceito de deficiência, o modelo social de deficiência compreende a incapacidade como resultado da interação entre as características funcionais de uma pessoa e as barreiras em seu ambiente. Este Tribunal estabeleceu que a deficiência não é definida exclusivamente pela presença de deficiência física, mental, intelectual ou sensorial, mas está interrelacionada com barreiras ou limitações que existem socialmente para que as pessoas possam exercer os seus direitos de maneira eficaz.     
 
Percebe-se, portanto, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos invocou expressamente o modelo social de conceituação de deficiência, ao entender que Talía deveria ser considerada pessoa com deficiência não apenas por ser portadora do vírus HIV, mas também pelo ambiente de extrema exclusão a que ela estava submetida, o que impossibilitou o exercício regular de seus direitos básicos como educação, saúde, habitação, dentre outros.
 
Ou seja, a incapacidade daquele meio social de incluir Talía e a presença de obstáculos que a impediram de exercer os seus direitos em condições de igualdade com os demais foram fatores primordiais para que a Corte a considerasse uma pessoa com deficiência.
 
Interpretando o posicionamento da Corte no presente caso, é possível chegar à conclusão de que, se porventura uma pessoa portadora do vírus HIV estiver inserida em determinado meio social inclusivo e adaptado para que ela possa exercer os seus direitos regularmente, então ela não poderá ser considerada pessoa com deficiência. Nos dizeres da Corte:
 
Nesse sentido, viver com HIV não é uma situação de incapacidade em si. No entanto, em algumas circunstâncias, as barreiras sociais que uma pessoa portadora de HIV enfrenta faz com que as circunstâncias do seu ambiente a coloquem em uma situação de deficiência. Em outras palavras, a situação médica de viver com o vírus HIV pode ser um fato gerador de deficiência devido às barreiras comportamentais e sociais. Portanto, a determinação para alguém ser considerado uma pessoa com deficiência depende de sua relação com o meio ambiente e não responde apenas a uma lista de diagnósticos. Assim, em algumas situações, as pessoas que vivem com HIV / AIDS podem ser consideradas pessoas com deficiência sob a conceituação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com deficiência.
 
Percebe-se, portanto, a adoção expressa do modelo social de conceituação de pessoa com deficiência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que levou em consideração não apenas o fato de Talía ser portadora do vírus HIV/ AIDS, mas também o ambiente de extrema exclusão a que ela estava inserida, assim como a incidência de diversos fatores de discriminação em um mesmo caso concreto.
 
Eis que Talía era pobre, mulher, criança, portadora do vírus HIV/AIDS e todas essas circunstâncias se entrelaçaram para agravar ainda mais a sua situação de vulnerabilidade e o seu consequente quadro de exclusão.   
 
Importante esclarecer que a Corte Interamericana de Direitos Humanos seguiu na mesma linha de abordagem de conceituação de pessoa com deficiência trazido pela Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, superando o modelo médico para a adoção do modelo social. Nesse contexto, para que se reconheça que uma pessoa tenha deficiência atualmente (modelo social) não basta que a pessoa tenha alguma limitação física, sensorial, mental ou intelectual (modelo médico), sendo imprescindível que essa limitação acarrete a sua desigualdade no meio social para o exercício dos direitos em relação a outras pessoas que não possuem aquela limitação. Ou seja, o conceito de deficiência é um conceito plural inter-relacional, devendo ser considerado o meio onde aquela pessoa esteja inserida, além de diversas outras variáveis, como, por exemplo, a idade, condição econômico-financeira, grau de instrução, dentre outros.
 
Flávia Albaine Farias da Costa é especialista em Direito Civil e Processo Civil pela UERJ e Defensora Pública em Rondônia. Criadora do Projeto “Juntos pela Inclusão Social”, é membro integrante da Comissão Especial de Direitos das Pessoas com Deficiência da Associação Nacional dos Defensores Públicos e Colunista de educação em direitos inclusivos da Revista Cenário Minas.  
 
Jaime Leônidas Miranda Alves é especialista em Direito Público pela PUC-Minas e especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes. 
 
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