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Nº 007 - 31 de agosto de 2021
Histórias de Defensor(a) - Criação da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina
O Histórias de Defensora e de Defensor deste mês traz relatos sobre a criação da Defensoria Pública de Santa Catarina. Criada por meio da Lei Complementar nº 575/12, a DPE-SC foi a penúltima do país a ser instalada conforme os moldes constitucionais.
 
Atualmente, a Instituição conta com apenas 115 defensoras e defensores públicos em atuação. Conforme dados do 2º Mapa das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital no Brasil, a Instituição ocupa o terceiro pior ranking do país quando se trata do déficit da categoria. Enquanto o Ministério da Justiça aponta que é necessário 1 defensor(a) para atender cada grupo de 15 mil pessoas que ganham até três salários-mínimos. Em SC 1 defensor(a) é responsável por uma demanda de mais de 54 mil pessoas. Com o número baixo de profissionais, a Instituição só alcança 30% das comarcas.
 
Para entender um pouco sobre a história e o atual panorama da Instituição, entrevistamos o defensor público de São Paulo e ex-presidente da ANADEP, Antonio Maffezoli. Ele que acompanhou os bastidores de criação da DPE-SC e teve o primeiro contato com os(as) empossados(as) da primeira turma já no curso de formação.
 
O bate-papo conta também com a participação da defensora pública Anne Teive Auras e do ex-presidente da ADEPESC, Cássio Kury Lopes.
 
ANADEP - 
Há quanto tempo vocês são defensores(as) públicos(as)? No caso da Dra Anne e do Dr Cássio, de que turma de empossados de Santa Catarina vocês são? Por que decidiram ingressar na carreira?
Antonio Maffezoli: Sou defensor público em São Paulo desde 2006, quando foi criada a Defensoria paulista. Mas, na verdade, exerço a função de assistência judiciária às pessoas em situações de vulnerabilidades desde 1994, quando ingressei nos quadros da Procuradoria de Assistência Judiciária, órgão da Procuradoria Geral do Estado que exercia essa tarefa até 2006. 
 
 
Anne Auras: Sou defensora pública há oito anos. Ingressei no primeiro concurso público realizado pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, fazendo parte da segunda turma de empossados (a primeira turma tomou posse em abril de 2013 e a segunda, da qual faço parte, em agosto de 2013). Durante toda a minha graduação, cursada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), nutri expectativas de atuar profissionalmente de modo a contribuir para a promoção da justiça social e a redução das desigualdades. Via o Direito como um instrumento e um espaço em disputa, por meio do qual se poderia atuar em favor das populações vulnerabilizadas do nosso país. Contudo, Santa Catarina não contava com uma Defensoria Pública e o papel dessa Instituição não era muito conhecido por mim, que nasci e cresci em Florianópolis. Lembro quando o movimento “Defensoria Pública: um direito sonegado” esteve na UFSC promovendo um evento para conscientizar estudantes sobre a ausência de Defensoria no Estado. Foi a primeira vez que refleti sobre isso e não hesitei em acrescentar minha assinatura ao documento que buscava a criação do órgão. Mas isso ainda parecia uma realidade distante na época e, então, eu pensava em fazer outros concursos públicos, como o da Magistratura, ou em permanecer na academia e ser professora universitária. Formei-me em 2011 e passei a trabalhar no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, pois fui aprovada no meu primeiro concurso para analista jurídica. Um ano depois, a Defensoria Pública começou a ser implementada no Estado, após a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a inconstitucionalidade do modelo de advocacia dativa até então adotado e determinou a estruturação da Defensoria Pública no prazo de um ano. Na época, o concurso não exigia três anos de atividade jurídica e eu consegui concorrer e ser aprovada, apesar de muito nova. Fui aprendendo o que era a Defensoria Pública e o que significava ser defensora pública a cada dia, na minha prática laboral, a cada processo, a cada atendimento, no contato com cada colega. E tenho muito orgulho de dizer que a minha história se confunde com a história da Defensoria Pública catarinense.
 
 
Cassio Kury: Costumo dizer que não fui eu que escolhi a Defensoria Pública, mas a Defensoria Pública que me escolheu. Entre 2010 e 2011, estava fazendo curso preparatório para o cargo de Promotor de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul. Durante as fases deste concurso, abriu o concurso para defensor público do Estado de Santa Catarina. Fiz o concurso para defensor também. No fim, não passei no concurso para Promotor de Justiça, mas passei no concurso para defensor público. Confesso que à época gostaria de ser promotor. Porém, ao tomar posse, em 09 de junho de 2014, na terceira chamada, junto com outros três colegas e fazer minha primeira audiência criminal na defesa de um assistido, vi que estava no lugar certo. Percebi, ali, naquele momento, que seria uma pessoa frustrada se estivesse sentado ao lado direito do juiz. Vi e senti que meu sacerdócio estava ligado a ajudar e buscar justiça para as pessoas desfavorecidas. Hoje não me vejo atuando em outra profissão. Amo o que faço e faço com amor, afinco e energia sempre buscando garantir os direitos das pessoas vulneráveis.
 
Dr Maffezoli, observamos que as discussões sobre a criação da DPE-SC começaram lá em 2005. Já em 2006, durante o V CONADEP foi lançado o Movimento pela implantação da DPE-SC. Como foi a organização da categoria na época?
A primeira movimentação para a criação da Defensoria Pública em Santa Catarina começou, como vocês disseram, em 2005. Foi em Chapecó, no âmbito da Universidade Comunitária da Região de Chapecó – UnoChapecó, quando a professora Maria Aparecida Lucca Caovilla, que coordenava o Projeto de Extensão Comunitária Jurídica, começou, junto às suas alunas e alunos, a questionar a inexistência da Defensoria Pública no estado.  
 
Em 2006, a professora Cida e duas alunas vieram ao Congresso da ANADEP, em São Paulo. Lá, nos bastidores (literalmente) do auditório do Memorial da América Latina, fizemos uma reunião com elas e compartilhamos algumas ideias sobre estratégias para cobrar a criação da Defensoria em Santa Catarina. São Paulo havia criado sua Defensoria poucos meses antes, a partir de um movimento da sociedade civil que reuniu mais de 400 entidades e que definiu 10 características fundamentais que a Instituição deveria ter: autonomia, independência, participação da sociedade civil, entre outras. Nesse sentido, o que certamente contribuiu para a criação da DPE-SC não foi a criação da DPE-SP em si, mas a mobilização anterior da sociedade civil. Essa foi a inspiração. 
 
A partir desse encontro, fizemos vários eventos em Santa Catarina – em Chapecó, Florianópolis, Blumenau, Joinville -, para debater com a sociedade civil, entidades, OAB, deputados, e conscientizar sobre a necessidade constitucional de se criar a Defensoria Pública. Várias defensoras e vários defensores públicos brasileiros – a maioria membros da diretoria da ANADEP - participaram dessas atividades. E aqui gostaria de fazer uma referência especial ao defensor Cristiano Vieira Heerdt, que na época era presidente da Associação dos Defensores Públicos do Rio Grande do Sul e diretor da ANADEP para a Região Sul, que acompanhou várias dessas atividades.
Observamos que a criação da Defensoria Pública em Santa Catarina também vem por meio de Projeto de Lei de iniciativa popular na Assembleia Legislativa do Estado. Qual a importância do engajamento da sociedade civil neste movimento?

Antonio Maffezoli: A apresentação desse projeto de iniciativa popular veio no contexto das inúmeras ações e mobilizações que foram feitas durantes esses anos todos – de 2007 a 2012 –, quando a DPE-SC foi efetivamente criada. Embora se soubesse do vício de iniciativa legislativa, ele serviu para chamar a atenção da Assembleia Legislativa e da imprensa para a necessidade da criação, ou seja, colocou o tema em evidência. 

Assim como essa, foram várias ações desenvolvidas pelo Movimento pela Criação da Defensoria Pública em Santa Catarina, que tinha o slogan “Direito Sonegado”. Não tenho a menor hesitação em dizer: a Defensoria Pública de Santa Catarina só foi criada pela cobrança incessante de dezenas de entidades da sociedade civil, a ANADEP entre elas. 
 
 
Anne Auras: O engajamento da sociedade civil foi fundamental. Como mencionei anteriormente, foi por meio do “Movimento pela implantação da Defensoria Pública em Santa Catarina”, organizado sob o slogan “Defensoria Pública: um direito sonegado”, que, ainda na faculdade, tive acesso às discussões a respeito da importância da Instituição para o acesso à justiça. Os eventos e campanhas realizados pelo Movimento foram fundamentais para levar essa questão ao conhecimento das/os catarinenses e pautar o tema, chamando a atenção para o descumprimento dos dispositivos constitucionais relacionados à assistência jurídica gratuita.
 
Cassio Kury: A Defensoria Pública naturalmente é uma Instituição parceira da sociedade civil organizada. Atuamos junto com diversos órgãos, associações e entidades que atuam na defesa das pessoas menos favorecidas. Então, o engajamento da sociedade civil para criação da Defensoria Pública no Estado de Santa Catarina foi de fundamental importância. Creio que, se não houvesse essa movimentação, essa participação e esse engajamento, até mesmo sustentando a criação desta Entidade fundamental para a sociedade e cidadania nos Tribunais Superiores, poderíamos ainda não ter Defensoria Pública em solo Catarinense.
 
Após diversos movimentos, a ANADEP decidiu por judicializar a questão, por meio do ingresso da ADI 4270. E, em 2012, o STF obrigou Santa Catarina a implantar Defensoria Pública em até um ano. Essa visão do STF para o fortalecimento da Defensoria Públ
Antonio Maffezoli: A propositura dessa ADI foi uma questão bastante debatida no âmbito do Movimento. Desde o seu início, em 2007, havia pessoas e entidades que defendia essa estratégia. A ANADEP sempre defendeu que só seria pertinente judicializar a questão depois que houvesse uma grande mobilização da sociedade civil catarinense e o tema já estivesse bastante evidenciado, no meio político e nos meios de comunicação. O receio era de que a judicialização precoce levasse o Poder Executivo estadual a propor um projeto de lei criando uma instituição mal estruturada e sem respeitar as características fundamentais pelas quais brigávamos. No final, nossa estratégia se mostrou correta, pois, quando veio a decisão do STF, os Poderes Executivo e Legislativo se movimentaram e acabaram se valendo de várias partes do anteprojeto de lei orgânica que o próprio Movimento havia redigido.
 
Anne Auras: Sem dúvida. Foi a partir dessa decisão que se obteve a aprovação da Emenda Constitucional Estadual n. 62/2012, que adequou a Constituição Estadual à Constituição Federal, e da Lei Complementar Estadual n. 575/2012. A luta da sociedade civil organizada, referendada pela decisão obtida junto ao Supremo Tribunal Federal, abriu caminho para a criação e estruturação da Defensoria Pública no nosso Estado.
 
Cassio Kury: Ao meu sentir, a decisão e a visão do Supremo Tribunal Federal em defesa da Constituição Federal, a qual determina que o único meio de garantir acesso à Justiça aos menos favorecidos é por meio da Defensoria Pública, contribuiu sim para destravar os diálogos no âmbito Catarinense. Todavia, para mim, o que mais contribuiu e vem contribuindo para o verdadeiro diálogo democrático entre os Poderes, Órgãos e Entidades acerca da importância da Defensoria Pública em solo catarinense é o trabalho de excelência, árduo e continuo, que meus colegas e minhas colegas realizam no Estado.
Após intensa mobilização da sociedade catarinense, o governador Raimundo Colombo aprovou o regulamento do 1º concurso. Mas, o primeiro ato só empossou 45 aprovados(as). Dra Anne, como isso era recebido pelos concursandos(as). Qual era a expectativa?
 
A posse de apenas 45 aprovadas/os, em abril de 2013, foi decepcionante. Havia muita expectativa não apenas com relação à posse dos/as 60 defensores/as, mas também com a posterior criação de mais cargos, haja vista a inafastável necessidade de ampliação da carreira. Todas e todos nós esperávamos, assim como esperamos hoje, que a Instituição iria crescer, ampliar-se e instalar-se em todo o Estado de Santa Catarina. Esse crescimento, contudo, dá-se a passos de formiga, a muito custo e sempre enfrentando resistência.
 
 
Posse da segunda turma de empossados, agosto de 2013
Dr Cássio, o senhor acha que essa primeira medida tem impactado até hoje o crescimento da Defensoria local? Na época, tinha 157 candidatos(as) aptos a tomarem posse. Ou seja, havia número de aprovados suficiente.
As dificuldades de crescimento da Defensoria Pública é um fenômeno nacional. Diariamente temos que mostrar o quão importante é o serviço público que prestamos para as pessoas necessitadas. Então, não foi esse fato isolado que impacta ou impactou no crescimento da Defensoria Pública Catarinense. Claro que a nomeação e o preenchimento de todos os cargos de defensores públicos previstos no edital mostrariam o norte que o Governo tomaria em relação à DPE. Todavia, hoje temos outro Governo administrando o Estado e temos a confiança de que já comprovamos que somos uma entidade fundamental para o Estado Democrático e que há necessidade imperativa de sempre se investir no serviço público que prestamos.
 
Antonio Maffezoli, a ANADEP também foi responsável pelo curso complementar de formação a defensores(as) de Santa Catarina. O que a Associação levou para os(as) novos(as) integrantes da categoria? Como foi essa recepção?
Em primeiro lugar, a ANADEP quis levar aos novos colegas o sentimento de pertencimento: eles não estavam sozinhos e iriam ter o apoio e o suporte das defensoras e defensores de todo o Brasil, inclusive das associações e Defensorias Públicas dos outros estados. Em segundo lugar, reforçamos muito a importância do associativismo para a organização das lutas institucionais, sempre em articulação com a sociedade civil.
 
Por fim, quisemos compartilhar com elas e eles experiências exitosas de atuações especializadas e de funcionamento dos órgãos internos da Instituição. E é importante destacar o comprometimento e engajamento dessas primeiras e primeiros colegas no enfretamento dos primeiros desafios da nova Instituição, que foram muitos e bastante difíceis, tanto no âmbito político quanto no âmbito da atuação mesmo, com diversos embates com juízes em várias comarcas. Nunca será demais registrar nossa admiração e gratidão pelo que elas e eles fizeram no início da DPE-SC. 
 
Dra Anne e qual foi sua visão sobre o curso de formação?
O curso de formação foi um espaço muito rico de socialização, troca de experiências, aprendizado sobre as funções institucionais da Defensoria Pública e, é claro, expectativa com relação à instituição que estávamos, todas e todos, ajudando a criar e construir. Foi muito importante conhecer um pouco sobre as atividades e a estrutura de outras Defensorias Públicas, bem como sobre a ANADEP e o associativismo. Na memória, levo como um período em que comecei a sentir que fazia parte de algo maior e que havia, ao meu lado, colegas que compartilhavam dos mesmos sonhos e das mesmas angústias.
 
 
Curso de formação da segunda turma de empossados (agosto de 2013 - em frente ao auditório promotor de justiça Luiz Carlos Schmidt de Carvalho)
Dr Antonio, em 2017, em sua gestão, foi organizado o XIII CONADEP, em Santa Catarina. Levar o principal evento da carreira para o estado foi uma forma de dar visibilidade nacional para a Defensoria Pública local?
 
Acho que mais importante do que dar visibilidade nacional à Defensoria Pública catarinense, a realização do CONADEP visava dar visibilidade local à importância e excelência da atuação das Defensorias Públicas estaduais pelo Brasil. Foi uma forma de chamar a atenção da imprensa, da Assembleia Legislativa e do Poder Executivo para o necessário fortalecimento e ampliação da Defensoria Pública. 
 
A homenagem à professora Cida nada mais foi do que o justo reconhecimento ao imprescindível papel que ela exerceu no Movimento pela Criação da Defensoria Pública em Santa Catarina. Na verdade, a ANADEP já havia concedido (durante o CONADEP de Natal) o seu Colar do Mérito ao Movimento em si, logo após a criação da DPE-SC. Mas decidiu-se conceder, agora no CONADEP realizado no próprio estado, um colar específico para ela. 
 
E para frisar bem minha admiração por ela e lhe fazer mais uma homenagem, faço questão de citar um verso da canção “Sonho que sonha só”, de Raul Seixas, que a professora sempre declamava ao final das suas falas: “Sonho que se sonha só/ É só um sonho que se sonha só/ Mas sonho que se sonha junto é realidade”. 
 
 
 
 
Dr Cássio, observamos que, desde o início, havia a preocupação em relação à advocacia dativa em SC. Houve entendimento do STF e até do TRF contra o modelo. O senhor acha que o papel da ANADEP e da ADEPESC foi fundamental nesse processo?
Com certeza absoluta. A ANADEP e a ADEPESC são fundamentais na defesa das Defensorias Públicas no País e das prerrogativas dos defensores e defensoras. Como se diz popularmente: ‘a união faz a força’. Esse é o espírito que permeia nossa Associação Nacional e Estadual. Atuamos em conjunto defendendo os interesses dos nossos associados e associadas e também defendendo a autonomia das Defensorias Públicas. Aliás, imperativo constitucional. O Constituinte entendeu que o modelo da Defensoria Pública é o que deve prevalecer para atender a população carente. Então, é natural que os Poderes Executivos e Legislativos cumpram a Carta Constitucional e invistam nas Defensorias Públicas. Essa defesa é constante para nossas associações.
Dr Cássio e quais perspectivas da ADEPESC para ampliação da DPE-SC?
Eu sou uma pessoa otimista. Creio que a Defensoria Pública de Santa Catarina, por todo trabalho que tem realizado ao longo desses nove, já demonstrou sua importância para a sociedade catarinense. Acredito que os Poderes Constitucionais, governos, deputados, enfim, já reconheceram que a Defensoria Pública é o modelo a ser adotado para atendimento da população vulnerável e que tem que haver investimento pesado na Defensoria Pública. O diálogo e o debate são constantes com os Poderes. Conseguimos demonstrar que somos fundamentais para o acesso à justiça e para a pacificação social. Então, acredito que a cada ano teremos mais e maiores investimentos na Defensoria Pública Catarinense, possibilitando a criação de cargos de defensores públicos para que possamos atender à EC 80 e também a devida valorização que cada um de nós merece, até mesmo por conta da fundamentalidade do nosso trabalho para sociedade.
Dra Anne, você tem algum relato marcante para nos contar que tenham vivenciado na Defensoria? Algum evento, atendimento ou conquista para os(as) usuários(as) dos serviços da Instituição?
 
Defensora Anne em atendimento no projeto "CRAS na comunidade", atendendo as comunidades da Prainha, Morro do Mocotó, Morro da Queimada e José Mendes, em Florianópolis (2018)
 
Eu teria relatos para escrever um livro! Quando tomei posse, aos 24 anos, fui lotada na comarca de Concórdia, no Oeste do Estado, onde eu deveria, sozinha e munida apenas de um notebook, “instalar a Defensoria Pública”. Quando cheguei, a Defensoria não possuía nem sede física. Fiz reuniões com magistradas/os, promotoras/es e até com o prefeito municipal para explicar qual seria o nosso papel. Fazia atendimentos sozinha em uma mesa instalada no Núcleo de Prática Jurídica da Universidade do Contestado, ao lado das/os estudantes.
 
Lembro-me exatamente dos primeiros processos criminais que chegaram para mim e de como levei dias para analisar processos simples e elaborar alegações finais orais longas, cheias de citação à doutrina e à jurisprudência, repletas de teses mirabolantes. Lembro de ter ido à unidade prisional várias vezes para conversar com os mesmos réus sobre sua defesa em processos bastante singelos. Na primeira audiência criminal com a presença da Defensora Pública da comarca, a expectativa era imensa, pois eu era uma jovem com jeito de recém-formada e que chegava à comarca dizendo ser “a Defensoria Pública”. Depois da minha primeira alegação final oral (sustentada com muita insegurança), lembro de ter ouvido a promotora e o juiz (profissionais que, para a minha sorte, eram muito sensíveis e comprometidos) me cumprimentarem e comentarem sobre a diferença que fazia ter uma defensora pública na comarca.
 
Quando saí de Concórdia para me mudar para Lages, o magistrado expediu um ofício à Defensoria Pública Geral congratulando pelas atividades desenvolvidas e pela competência dos nossos profissionais. Posteriormente, nas comarcas de Lages e Blumenau, muitas foram as atuações marcantes, nas quais pequenas decisões favoráveis faziam com que usuárias e usuários retornassem agradecidas/os, trazendo biscoitos caseiros e doces. Muitas vezes, era necessário enfatizar que aquele era o nosso trabalho, a nossa obrigação, e que isso era um direito delas/es: não era um favor ou uma graça.
 
 
Mutirão de atendimento na Praça XV de Novembro, campanha nacional "Em defesa delas" da ANADEP (maio de 2019)
 
Já em Florianópolis, minha atuação na área da Execução Fiscal legou histórias inacreditáveis, de famílias numerosas, compostas por pessoas idosas, crianças, pessoas com deficiência, que estavam prestes a perder suas casas em leilão, e que conseguiram decisões favoráveis após a Defensoria Pública identificar uma nulidade no processo de execução. Houve um caso em que uma idosa iria perder seu único imóvel em razão de dívida acumulada de IPTU, com leilão marcado para dali a poucos dias. Seu filho procurou a Defensoria Pública e consegui demonstrar que se tratava de um caso de homonímia.
 
Também são muito marcantes os atendimentos que fiz na assistência às mulheres em situação de violência. Atendimentos longos, demorados, complexos, que exigem uma postura acolhedora e não culpabilizadora, os quais muitas vezes terminam com um desabafo, por parte da mulher, de que era aquilo que ela precisava: um espaço seguro para falar sobre o que ocorreu e se sentir acolhida, abraçada, compreendida. A percepção da importância dessa assistência é um dos sentimentos que me move hoje, na coordenação do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM), recentemente criado pela Defensoria Pública em um movimento de reconhecimento da importância da atuação coletiva, especializada e estratégica.
 
 
Mutirão de atendimento no Largo da Alfândega, no Centro de Florianópolis, com o primeiro Defensor Público-Geral (que não compunha a carreira e fora nomeado pelo governador), Ivan Ranzolin (maio de 2016)
 
E como vocês acham que a sociedade e parlamentares enxergam hoje a DPE?

Antonio Maffezoli: Em todos os estados em que a Defensoria Pública foi criada a relevância social e o trabalho de excelência ganharam notoriedade quase instantânea. Em Santa Catarina não foi diferente. O surgimento de uma nova instituição do sistema de justiça, especializada e vocacionada para o atendimento das pessoas em situações de vulnerabilidades, causa um impacto social e político significativo. 

Anne Auras: Acredito que, passados oito anos desde a criação da Defensoria Pública no Estado, a sociedade catarinense reconhece a relevância das funções desempenhadas pela Instituição. Não apenas a nossa atuação individual nos casos de família, cíveis e criminais tem sua qualidade reconhecida, mas também as conquistas do Núcleo Recursal Criminal nos Tribunais Superiores, a atuação coletiva em favor do direito à moradia, os mutirões de atendimento (como as Forças Estaduais na Execução Penal) e, mais recentemente, a atuação do Grupo de Apoio à Pessoas em Vulnerabilidade (GAPV), criado para enfrentar os desafios da pandemia de covid-19, e dos Núcleos Especializados, implementados em 2021 e que já conquistaram o reconhecimento de instituições e movimentos sociais. O trabalho cotidiano de cada defensor(a), servidor(a) e estagiário(a) faz diferença na vida de cidadãs e cidadãos catarinenses e isso se reflete no conhecimento geral que a população tem da Instituição. Mas, apesar disso, é preciso admitir que ainda há muito desconhecimento com relação às funções da Defensoria, principalmente nas comarcas em que ela ainda não está instalada. Somos uma carreira muito pequena, formada por poucas/os profissionais e instalada em apenas 24 comarcas, de modo que muitos desafios ainda se impõem.
 
Cassio Kury: Tenho certeza absoluta que a sociedade e os parlamentares nos enxergam hoje como uma Instituição essencial e fundamental para garantir os direitos das pessoas desfavorecidas. Como presidente da ADEPESC, tenho conversado muito com a sociedade civil organizada e com os parlamentares e o retorno deles sobre nosso trabalho é o melhor. Nos veem como indispensáveis para ajudar e orientar a população carente e para garantir o acesso à justiça a ela. Claro que ainda temos muito a crescer em Santa Catarina; claro que temos que diariamente mostrar nossa importância, mas esse trabalho tem sido feito desde o início da Instituição e continua sendo feito diariamente pelos meus colegas defensores e defensoras.
E, por fim, o que você acha que precisa ser feito para o fortalecimento da Defensoria Pública nacionalmente?

Antonio Maffezoli: A luta pelo fortalecimento da Defensoria Pública em todos os estados do Brasil é uma luta constante. Todas as colegas e todos os colegas têm na ponta da língua os objetivos dessa luta: obtenção do orçamento justo e necessário; aumento do número de membros e servidores; atuação em todas as comarcas do estado; respeito às autonomias administrativa e financeira e à independência funcional. E destaco, como sempre acho importante fazer, quão imprescindível é o associativismo para a organização e maximização dessa luta. 

Anne Auras: Não há dúvidas de que o fortalecimento da Defensoria Pública pressupõe o aumento do número de membras/os e servidoras/es, a instalação de órgãos de execução em todas as comarcas e a obtenção de orçamento adequado ao exercício de suas funções de forma efetiva. E acredito que essa luta não pode vir dissociada de um aprofundamento da aproximação com os movimentos sociais, da implementação das Ouvidorias Externas, da democratização dos nossos quadros (com a efetivação das cotas nos concursos públicos, a inclusão das questões de raça e gênero nos processos seletivos, a representatividade nas bancas de concurso, eventos e comissões, a implementação de políticas de incentivo e estímulo à ascensão profissional das mulheres etc), da aproximação com as universidades, da produção de dados e pesquisas que possam contribuir para a compreensão das múltiplas desigualdades que estruturam o nosso país. De uma atuação especializada, estratégica e firme na defesa do serviço público, no controle social das políticas públicas. A Defensoria Pública surge a partir dos movimentos populares e deve se manter ao seu lado. É daí que extraímos a nossa força, a nossa potência e a nossa esperança.
 
Cassio Kury: O que precisa ser feito e está sendo feito desde o início em solo catarinense é trabalhar. Trabalhamos muito. Diariamente. Incansavelmente. Sem dia nem hora para prestar o melhor serviço público à sociedade. Com muito trabalho, mostrando o quão indispensável nós somos, e por isso o Constituinte nos escolheu como modelo de atendimento aos desvalidos, vamos convencer e estamos demonstrando aos Poderes e à Sociedade que é imperativo o investimento pesado na Defensoria Pública.
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