Se você não consegue visualizar as imagens deste e-mail, clique aqui, ou acesse
http://www.anadep.org.br/wtksite/grm/envio/2892/index.html
 
Nº 004 - 28 de maio de 2021
Neste mês de maio, a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), com apoio do Colégio Nacional de Defensores Gerais (Condege) e das Associações dos estados e do Distrito Federal, lançou a campanha “Racismo se combate em todo lugar: Defensoras e Defensores Públicos pela equidade racial". A iniciativa visa fomentar a necessidade de equidade étnico-racial no acesso a direitos e políticas públicas de pessoas indígenas, negras, quilombolas e povos tradicionais. 
 
Outro objetivo da campanha é promover internamente a reflexão sobre a adoção de políticas afirmativas e práticas antirracistas para combater a todas as formas de discriminação racial dentro e fora da Defensoria, bem como a construção de mecanismos para que haja equidade racial na ocupação dos espaços de poder dentro da Instituição.
 
Dados do IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, lançado pelo Ministério da Justiça, em 2016, apontam que 76% das defensoras e defensores públicos estaduais e distrital declaram-se brancos; 19% declaram-se pardos; 2,2% declaram-se pretos; 1,8% declaram-se amarelos; e 0,4% indígenas. 
 
Para compreender um pouco e conhecer a trajetória de defensoras e defensores públicos dentro da Instituição, o "História de Defensora e de Defensor" desta semana conversa com as defensoras públicas Maiara Pereira (DPE-BA) e Lúcia Helena (DPE-RJ), e o defensor público Sérgio Santos (DPE-MG).
 
Ao longo da entrevista, elas e ele contam sobre a presença de pessoas negras no ensino superior, o ingresso nas instituições do sistema de justiça, a reserva de cotas em concursos públicos e exemplos de práticas antirracistas. Confira:
 

 

ANADEP - 
Há quanto tempo vocês são defensores(as) públicos(as)? Por que decidiram ingressar na carreira?

Maiara Pereira: Eu ingressei na Defensoria Pública do Estado da Bahia em 23 de novembro de 2018. Eu costumo dizer que a Defensoria foi uma das melhores surpresas que aconteceu na minha vida. Apesar de não saber exatamente qual carreira jurídica seguir, durante a faculdade eu tencionava ser servidora pública. Ocorre que, após término da graduação, veio a maternidade. Depois, comecei também a advogar e, naquele momento, o serviço público, aparentemente, parecia ser um sonho distante. Mas eu não estava feliz advogando e a necessidade de ingressar no concurso público potencializou-se com o nascimento de minha filha. Então, apesar de todas as dificuldades, foi na maternidade que eu encontrei estímulos para estudar e lograr aprovação em um concurso público.

Em meio a essa busca encontrei o edital do concurso para a Defensoria Pública. Comecei estudar e conhecer melhor a Instituição, já que, infelizmente, na faculdade eu tive muito pouco contato com a carreira. Me apaixonei pela Defensoria estudando para ser defensora e entendendo a magnitude desta Instituição. Na teoria, eu percebi que a Defensoria Pública era o meu lugar, quando eu fui aprovada no concurso, mais que nomeada para um cargo público, eu fui acolhida.
 
Lúcia Helena: Ingressei na Defensoria Pública em 04 de dezembro de 1997. Inicialmente, eu havia decidido fazer concurso público para uma carreira jurídica porque buscava estabilidade. Eu advogava e tinha sido muito difícil me manter na advocacia, mas, ainda assim, me mantive por cinco anos. Trabalhava, também, como advogada do Conselho Regional de Farmácia do Estado do Rio de Janeiro e decidi fazer concurso público. Consegui ser aprovada após um ano e dez meses estudando muito e direto, sendo que a Defensoria Pública foi o primeiro concurso que fiz aqui no Rio de Janeiro.
 
Sérgio Santos:  Sou defensor público de Minas Gerais desde 1998. Por volta de 1985, quando cursava o  terceiro ano de direito, em São José dos Campos, um amigo de nome Walmir migrou para o Canadá. Passado algum tempo, este amigo solicitou que lhe enviasse notícias sobre o racismo no Brasil, na década de 80. À época, a luta pela redemocratização recolocou os movimentos sociais nas ruas e as denúncias sobre o racismo no Brasil repercutiam no jornais.
 
Passado algum tempo, recebi a informação de que Walmir havia conquistado a condição de cidadão canadense. Ele havia reivindicado asilo político por intermédio da Defensoria Pública de Quebec.
 
Com isso, busquei entender como a Defensoria funcionava. Descobri que, em Minas Gerais, a Defensoria havia sido criada por um decreto, e o exercício da atividade ocorria a nomeação e a Instituição estava vinculada ao Poder Executivo. Somente depois, surge a regulamentação da Defensoria Pública em capítulo específico na Constituição Federal de 1988. 
 
Em 1997, abriu inscrição para o concurso da Defensoria Pública em MG. Nesse mesmo ano, cheguei à fase oral do certame da Magistratura em MG, mas fui reprovado. Ao mesmo tempo, obtive aprovação no concurso da Defensoria Pública sem previsão de nomeação. 
 
Em 1998, quando já ocupava o cargo de Analista na Justiça Federal na Segunda Região em SP, começaram as ofertas de vagas para os concursados da Defensoria Pública de MG por ordem de classificação. Na última leva de oferta de vaga final do Governo Azeredo decidi que tomaria posse. A primeira comarca que atuei foi Arinos. Depois passei por Capinópolis, Caldas, Cristina e Cambuí. Hoje, atuo na cidade de Extrema-MG.
Nos últimos anos, houve aumento da presença de pessoas negras no ensino superior. No entanto, em alguns cursos, o retrato racial ainda é de desigualdade. Quais os problemas que vocês enfrentaram no curso de Direito?

Maiara Pereira:  Eu cursei a faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. A UFBA era um espaço ainda muito “elitizado”. A maioria dos estudantes provinham das classes média e alta.

Entrei na faculdade no ano de 2005, mesmo ano em que esta universidade implementou cotas para estudantes egressos de escolas públicas. A maioria dos estudantes de escolas públicas são negros. Então, apesar de eu não ter adentrado à faculdade pelo sistema de cotas, já que eu cursei o ensino médio em escola particular, eu era uma adolescente negra que estava ocupando um espaço que o padrão hegemômico não havia demarcado para mim. Então, durante o curso, tal e qual os beneficiados pelos sistema de cotas, eu tive muita dificuldade para integração aos espaços da faculdade. O racismo estrutural me atravessou de forma muita intensa porque eu me sentia desqualificada, muitas vezes com a sensação de que, de fato, aquele lugar não era meu. Eu sempre lembro de mim como uma adolescente tímida, mas minha experiência na escola particular e na faculdade de direito me tornou apática.
 
Apesar de a UFBA prestar uma graduação de excelência, com professores de renome, eu não considero que fiz um bom curso de direito. Grande parte das minhas dificuldades durante o curso eu atribuo a minha baixa autoestima, causada sobretudo pelo racismo que experimentei no ensino médio e que potencializou-se na universidade.
 
Lúcia Helena: Os problemas saltam aos olhos. Basta pensar que a taxa de analfabetismo das mulheres negras é maior que o de mulheres brancas. As mulheres negras têm mais dificuldade de acessar as universidades. O curso de direito já tem uma barreira quanto à participação feminina, de um modo geral. No meu caso, especificamente, além do viés racial, havia o viés social e econômico. Estudei em universidade privada, paga com meus próprios recursos. Trabalhava para pagar meus estudos e tinha que trabalhar muito. Na sala de aula, me recordo bem, haviam poucos alunos negros. E, pelo que me recordo, fui a única mulher negra, autodeclarada, a se formar naquela turma.
 
Sérgio Santos: O racismo que é estrutural e sistêmico responde essa pergunta. Estamos falando do não-lugar reservado ao povo preto. As políticas públicas compensatórias são um compromisso assumido pelo Brasil, em 2001, com a Conferência de Durban, e nos mostram que, após três séculos de escravidão, ainda estamos engatinhando.
 
Problemas, no curso de direito, devo dizer que tenho dificuldade em responder. Meu problema - se posso chamar de problema -  quando você está determinado a alcançar um objetivo, era com o pagamento do curso. Passava os fins de tarde na tesouraria da faculdade para negociar o pagamento como condição para receber a folha de prova. 
 
Na época, fiz o quarto e quinto ano valendo-se do crédito educativo. É necessário lembrar que a história considera a década de 80 como a década perdida, hiperinfração e tudo que se possa imaginar. As greves contra os aumentos de mensalidades eram frequentes e lá estava eu como representante da classe. Com a lei de Ação Civil Pública de 1985, tinhamos a certeza que o meio ambiente estava salvo, pois os difusos e coletivos seriam garantidos. As maiores recordações são as bandeiras levantadas acreditando que viveríamos a ideia de um verdadeiro novo Brasil, após a abertura política e o fim do regime militar. O Rock Nacional fazia com que acreditássemos nisso. Legião, Barão Vermelho, Titãs etc. Hoje estamos novamente a perguntar: "QUE PAÍS É ESSE?".
Vocês acham que para as mulheres negras ainda é mais difícil ingressar nas carreiras de justiça se comparado o ingresso dos homens negros?

Maiara Pereira: Nós mulheres negras ocupamos a base da pirâmide social, abaixo, inclusive, do homem negro. Como diz Carla Akotirene, na encruzilhada das opressões, mulheres negras e pobres são marcadas pela discriminação de raça, gênero e classe.

As dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras para concluírem os estudos as impedem também de acessar melhores oportunidades de trabalho, inclusive nas carreiras jurídicas. A situação da mulher negra pode ser considerara ainda pior quando se constata que, em regra, são mulheres que não têm suporte familiar e financeiro adequado para investir tempo e dedicação nos estudos. Muitas são as únicas responsáveis por seus filhos pequenos. Mulheres negras e pobres precisam ingressar no mercado de trabalho para prover o sustento de seus filhos. Na maioria das vezes, a única opção para as mulheres negras é o mercado de trabalho informal. Trabalhar em funções de muito desgaste físico e emocional: cuidar da casa e dos filhos. Esta é a realidade da mulher negra no Brasil e um cenário totalmente desfavorável para o ingresso em carreiras jurídicas.
 
Reconheço que homens negros também possuem muitos entraves para acessar carreiras jurídicas, basta ver que o padrão do sistema de justiça é o homem branco. Mas, enquanto o homem negro pobre é oprimido por raça e, em sua maiora, pela classe, a opressão que pesa sobre as mulheres pobres racializadas é tríplice. Como diz Grada Kilomba, a mulher negra, por não ser nem branca e nem homem, ela é o outro do outro. Portanto, nós somos exatamente o oposto de quem ocupa o topo da pirâmide social, o homem branco, sujeito universal e o topo do sistema de justiça.
 
Então, a maneira como as opressões se interseccionam vulnerabilizam muito mais as mulheres negras que os homens negros. Portanto, sim, as dificuldades para as mulheres negras adentrarem nas carreiras jurídicas são maiores que para os homens negros.
 
Lúcia Helena: Sem dúvida nenhuma que para a mulher negra é mais difícil. A dificuldade financeira, aliada aos problemas raciais acabam revelando esta dificuldade. A mulher negra quando tem filho acaba tendo que colocá-lo na creche, ou não tem sequer com quem deixar seu bebê para trabalhar e daí já começa a dificuldade. Aprendi uma coisa: se tiver uma fila de preferências talvez a mulher negra seja a última da fila. Os cursos são caros, os gastos são altos e isto se traduz no aumento das dificuldades que para as mulheres é mais acentuado.
Havia a reserva de cotas no concurso público que vocês prestaram para ingresso na Defensoria Pública?

Maiara Pereira: Sim. Prestei concurso para a Defensoria Pública da Bahia no ano de 2016. Neste concurso houve a previsão de 30% das vagas destinadas para população negra. Eu fui aprovada dentro das vagas reservadas para a população negra.

Lúcia Helena: Quando fiz o concurso para a Defensoria Pública sequer se cogitava isto. Não que eu soubesse.

Sérgio Santos: Não. Ainda era um agenda abraçada e reivindicada com muito persistência pelo Movimento Negro. Não devendo jamais esquecer que políticas compensatórias somente foram acolhidas como política pública no Brasil graças ao esforço inimaginável do Movimento Negro.

O que vocês consideram que é preciso ser feito para haja mais equidade de raça dentro da Instituição?
Maiara Pereira: Além da implantação e ampliação de uma política afirmativa séria de reserva de vagas para a população negra e indígena, é preciso a adoção de práticas antirracistas dentro Instituição. Não basta permitir que as pessoas negras e indígenas ingressem no quadro da carreira, é necessário franquear e estimular o acesso destas pessoas aos cargos de poder e decisão dentro da Instituição. Qualquer órgão que se diz antirracista tem que se despir do paternalismo e compreender que sua construção precisa contar necessariamente com a valorosa participação da população negra e indígena.
 
Sob outra perspectiva, é preciso considerar também que apenas a política de cotas no concurso não é suficiente para que esta população ingresse na Instituição. É necessário pensar na realidade da população negra pobre e indígena e o percurso que é preciso percorrer até o momento de prestar o concurso público. A sub-representação de negros e indígenas nos cargos públicos é, portanto, apenas a ponta do iceberg, porque para concorrer a um cargo público como este é preciso ultrapassar muitas barreiras, notadamente a da pobreza, da falta de oportunidades, do genocídio da juventude negra, do racismo, da deficiência de investimentos em uma educação pública de qualidade, enfim, todas essas pautas devem ser enfrentadas e fazer parte das agendas governamentais para que haja equidade em todos os lugares.
 
Lúcia Helena: A mudança perpassa pelas cotas no concurso público, mas, também, temos que tentar dar acesso a estas pessoas desde a infância. Penso que cada vez mais temos que ter espaços de conversas sobre racismo. Debates devem ser promovidos cada vez mais. Temos que demonstrar e lembrar que o racismo existe e que se faz necessário querer mudar, porque, na verdade, nós podemos mudar.  
 
Sérgio Santos: Para mais equidade de raça é preciso ver políticas públicas reparatórias levadas a sério. Lembrando que não se trata de pensar em números, mas em protagonismo. Ou seja, educação na base. Busque as estatísticas e verá que no contexto de extermínio de jovem negros, o que temos é que, em sua maioria, esse jovens são analfabetos. Dê ao povo preto dignidade que tudo muda. Na mesma perspectiva, continuam tratando os corpos negros como semovente, ou coisa. Isso tem que acabar.
Há alguma prática ou projeto antirracista que vocês acham que é exemplo para as instituições? Podem nos relatar?

Maiara Pereira: A Política de equidade racial e combate ao racismo, lançada pela Defensoria Pública do Estado da Bahia, no último 13 de maio, foi construída pela Grupo de Trabalho pela Igualdade Racial, e representa um grande avanço no combate ao racismo institucional. Com a adoção desta política, a Defensoria Publica do Estado da Bahia reconhece que o racismo é estrutural e passa a adotar práticas institucionais antirracistas. Este é um projeto inédito dentro das Defensorias Públicas de todo o Brasil, que deve ser replicada não só pelas demais Defensorias, mas por todos os órgãos públicos.

Lúcia Helena: Sim, eu diria que a Campanha sugerida pela Comissão Étnico-Racial da ANADEP é muito importante. O Fórum de Juízas e Juízes Negros é outro projeto muito interessante. No âmbito da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, cito a criação da COOPERA – Coordenadoria de Promoção da Equidade Racial, que busca incentivar ações práticas que promovam a igualdade racial não somente dentro da instituição, mas fora desta.

A Campanha Nacional 2021 da ANADEP tem como slogan "Racismo se combate em todo lugar" e visa debater também sobre a representatividade das pessoas negras e indígenas nos espaços de poder. Como vocês analisam o mote da campanha?
Maiara Pereira: A sub-representação de pessoas negras e indígenas em espaços de poder é um erro que deve ser corrigido. O mote da Campanha da ANADEP verbaliza a necessidade urgente de reparação histórica. Todas as instituições, especialmente as do sistema de justiça, precisam estimular a pluralidade de pessoas e de epistemologias. Pessoas negras e indígenas devem estar em todos os lugares, devem participar dos debates, das decisões e da construção de toda e qualquer política pública. Infelizmente, o que se percebe é que o direito de fala só é franqueado às pessoas negras quando o assunto é racismo. Pessoas negras, quando muito, são convidadas para falar e ensinar aos brancos sobre antirracismo. Desconsideram que nós temos outras potências, somos ricos e ricas de experiência e de conhecimento. Nós devemos sim ocupar altos cargos em coordenações/comissões temáticas institucionais que tratem do enfrentamento ao racismo, mas também podemos ser chefes da Instituição.
 
O que nos impede? É urgente o rompimento com a concepção hegemônica eurocêntrica. É imprescindível que o sistema de justiça seja revisado e reconstruído sobre os pilares de uma verdadeira democracia racial, da equidade e da diversidade. O acesso de pessoas negras e indígenas em todos os espaços não é favor, é a reparação histórica dos mais de três séculos em que nossos e nossas ancestrais foram escravizados e escravizadas. É reparação pelo genocídio praticado contra indígenas, é medida imprescindível para a abertura das instituições à diversidade, é introduzir perspectivas epistemológicas necessárias para a construção de espaços com equidade de fato.
 
Por fim, entendo que é importante também que internamente a instituição assuma o compromisso de ampliar as formas de acesso dos assistidos aos serviços prestados pela Defensoria Pública. O nosso público é essencialmente preto e pobre, de modo que toda e qualquer política interna deve também considerar que pauta racial e de classe é o cerne do nosso trabalho. Portanto, se nós buscamos a equidade étnico racial em todos os espaços, é preciso buscar meios também para viabilizar a emancipação dos assistidos e assistidas que demandam a Defensoria Pública.
 
Lúcia Helena: Tenho muito orgulho da Campanha Nacional. E acho que será muito bom discutir o tema, sob os mais diversos ângulos, visando o combate do racismo sobre todas as áreas. Temos que incentivar que pessoas negras e indígenas possam cada vez mais ocupar espaços de poder e, a Campanha, deve fazer, também, esta abordagem. Quanto as pessoas negras e indígenas serem melhor representadas na sociedade, eu acredito muito nos estudos, e, acho que temos que oferecer a base de crescimento para estas pessoas. O problema é que o cenário começa desigual diante das próprias situações econômicas vividas, além de outros fatores.
Há algum caso ou relato de racismo que marcaram a vida de vocês?

Maiara Pereira: Todos os dias nos deparamos com episódios de racismo veiculados nas mídias e redes sociais. São tantas histórias dolorosas e que sempre me causam profundo abalo emocional e, sobretudo, revolta. Todas os casos revelam de maneira escancarada o racismo estrutural em suas nuances mais cruéis.

Enquanto menina e mulher negra, e inclusive enquanto Defensora Pública, eu já experimentei episódios de racismo que me marcaram profundamente. O racismo que mais me abalou, mas que foi fundamental para a construção da minha personalidade de mulher negra, foi com a minha filha, quando o cabelo dela passou a ser alvo de “racistas bem intencionados”. Os comentários sobre o cabelo dela começaram a minar a auto estima de uma menina de apenas quatro anos. Com apenas quatro anos, ela rejeitava sua estética e demandava cada vez mais para que eu alisasse o seu cabelo. Então, eu percebi que eu precisava abrir os caminhos para ela. Eu me empoderei para que ela também se empoderasse.
 
Lúcia Helena:  Relato de racismo? Claro que tenho: alguns mais marcantes, outros menos. Mas meus pais e meus avós, desde cedo, me ensinaram a responder estas questões. Já tive dificuldade na resposta, mas procuro aplicar o ensinamento deles.  
 
Sérgio Santos: O racismo de cada dia se faz presente todo o tempo. Entretanto, lembro do meu primeiro emprego em uma empresa para qual fui indicado por um amigo que lá trabalhava. Após todo processo seletivo e aprovação, sem que houvesse um motivo que justificasse, foi exigido que eu apresentasse duas cartas de apresentação, como condição para conclusão do processo. Lembrando que um mesmo amigo branco que havia sido admitido cinco meses antes, dele nada foi exigido. Essas e outras ocorrências são sempre classificada como "mal entendido".
Dra Maiara Lima quais as mudanças que você tem percebido sobre a questão racial dentro das instituições de ensino e na própria Defensoria Pública? Você enxerga um avanço a partir da sua posse e atuação?
 Com a implantação do sistema de cotas as instituições de ensino superior tornam-se democráticas. A faculdade de direito da universidade Federal da Bahia, por exemplo, hoje é muito mais plural do que há cerca de 15 anos quando eu fui aprovada no vestibular. Uma faculdade que era essencialmente voltada para pessoas brancas e da classe média e alta, hoje também é espaço para a população negra. Pluralizam-se as pessoas, pluralizam-se os debates, oxigenam-se as ideias. Isso reflete também no mercado de trabalho e no acesso aos cargos públicos, pois a população negra tem a oportunidade de escolarização e qualificação.
 
O ingresso da população negra dentro da Defensoria Pública da Bahia, a partir do concurso público de 2016, trouxe muitos reflexos positivos para dentro da instituição, principalmente na questão racial. Os defensores públicos e as defensoras públicas cotistas fundaram o Grupo de Trabalho pela Igualdade Racial e têm sido responsáveis por mudanças estruturais fundamentais dentro da instituição.
 
Hoje a instituição pode ser considerada vanguardista no que tange a política de enfrentamento ao racismo e assume uma postura antirracista. Eu acredito que nós já avançamos muito, mas ainda há muita mudança para fazer acontecer. Muitas mulheres e homens negros lutaram para abrir os caminhos que hoje nós trilhamos. Eu tenho esta mesma responsabilidade com as minhas ancestrais e com as gerações vindouras.
Dra Lúcia Helena e Dr. Sérgio, vocês são os primeiros negros a ingressar na Defensoria Pública. Vocês acreditam que foram exemplo e inspiração?

Lúcia Helena: Eu não sei se sou uma das primeiras mulheres negras a ingressar na Defensoria. Não tenho esta referência, sinceramente, não tenho e daí, não posso afirmar. Mas, acho que posso servir de exemplo a outras pessoas sim. Quando entro nas salas de aulas e vejo alunos e alunas negras, eu acho que aquelas pessoas acabam tendo uma esperança, no sentido de que é possível chegar em diversos lugares e a vontade de crescer e querer deve ser seu limite. Acredite em você e vá em frente, foi o que sempre ouvi dos meus avós e pais.  

Sérgio Santos: Essa pergunta faz pensar: exemplo e inspiração para quem? Para minha famíla, certamente. Lembrando que, ainda como parte indispensável do sistema de justiça, a Defensoria Pública vem conquistando seu espaço somente em tempos recentes. 

Regra geral: o entendimento é de que juiz e promotor têm poder. Quanto ao defensor aparece a sempre pergunta: o que faz o defensor? Temos que ser realistas para a própria Instituição Defensoria que não sabe sequer quantos negros compõem seus quadros, não tem a ver com a invisibilidade só agora. Se de alguma forma puder servir de inspiração será para essa fantástica juventude nas lives discutindo essa realidade e reivindicando seu papel dentro da Instituição. Apenas gostaria de alertar que não temos que achar que vamos inventar a roda. Só estamos aqui enquanto negros e como parte do sistema de justiça graças a luta daqueles que ficaram pelo caminho.
 
Temos uma grande responsabilidade. Me sinto realizado ao ver essa pauta sendo trazida, ainda que o letramento racial tenha que começar com os próprios membros da Instituição. Pois, a essa altura, não cabe esse dilema quando a ser pardo ou negro. Na verdade, ser um dos negros mais antigos a entrar na Instituição muito me honra.
E, por fim, o que você acha que precisa ser feito para o fortalecimento da Defensoria Pública?

Maiara Pereira: Expansão. A Defensoria Pública precisa estar estruturada em todas as comarcas do país. Mas a expansão não deve ser apenas física. O povo precisa conhecer o órgão, os governantes precisam reconhecer a essencialidade do serviço público prestado pela Defensoria Pública. É necessário, portanto, a destinação de verba pública para a ampliação dos quadros de defensores e defensoras públicas. As pessoas precisam saber que uma Defensoria Pública forte contribui para a emancipação dos mais vulneráveis e promove justiça social. Por outro lado uma Defensoria Pùblica enfraquecida contribui para o aumento das desigualdades sociais, na medida em que retira da população vulnerável, notadamente as pessoas pretas e pobres, o direito de acesso à justiça. Por fim, eu acredito que o respeito à autonomia da Defensoria Pública e a deferência às prerrogativas dos Defensores Públicos e Defensoras Pùblicas também robustece o órgão. Portanto, entendo que o fortalecimento das entidades de classe também contribuem muito para o fortalecimento do próprio órgão.

Lúcia Helena: A Defensoria Pública vem crescendo cada vez mais e cada vez mais somos mais fortes. A Defensoria Pública busca a defesa das pessoas vulneráveis, paridade de armas, além da observância de diversas garantias. Deste modo, o fortalecimento da Defensoria Pública deve primar também pela defesa de menos desigualdades.  

Sérgio Santos: O fortalecimento da Defensoria ocorrerá na medida que assumir em sua amplitude o seu papel. Veja bem, o Estado Brasileiro a assumir a condição de signatário de Convenções e Tratados voltados a garantia de acesso à justiça tem na Defensoria o agente estatal designado para tal fim. Tudo isso inclui solução pacífica de litígio, cultura de paz, atuação contra à tortura, enfrentamento do encarceramento em massa, etc. 

Participei do Congresso Mundial de Medição em Belo Horizonte, em 2012. Nessa oportunidade pude ver como o tema é pensado no mundo em contato com o pessoal das Américas e Europa. Quero dizer que a solução extrajudicial no Brasil deveria ser assumido em absoluto pela Defensoria Pública. O que devemos entender quando levantamos a bandeira da igualdade Racial. Igualdade deve ser pensada muito além da igualdade formal. A obra de Moreira ensina que a Igualdade buscada deve ser não só de um material mas de um status cultural, é preciso passar a ver o direito e a cultura como uma categoria de direitos humanos. Temos visto o vilipêndio à cultura negra - a exemplo da religiões de matriz africana - e não podemos ficar assistindo.
ver edições anteriores »Clique aqui caso não queira mais receber nossos e-mails.