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Nº - 12 de março de 2020

Em um mês alusivo ao Dia Internacional da Mulher, o Histórias de Defensora desta semana conta a trajetória da defensora pública do Ceará, Mônica Barroso, que atua fortemente nos Tribunais Superiores e foi protagonista na implantação do primeiro núcleo temático da Defensoria em defesa das mulheres vítimas de violência. Além disso, a defensora é professora universitária licenciada de Direitos Humanos e atuou na construção da Lei Maria da Penha - sancionada em 7 de agosto de 2006, como Lei n.º 11.340 que visa proteger a mulher da violência doméstica e familiar. 

Na entrevista, a defensora conta os caminhos percorridos até agora como defensora pública. Confira na íntegra: 

ANADEP - 
Há quanto tempo você é defensora pública? Por que decidiu ingressar na carreira? Como foi este ingresso?

Prestei concurso no final da década de 70 para a advocacia de ofício, que era um apêndice da Secretaria de Justiça do Estado, mas não fui chamada de imediato. Prestei, então, concurso para a magistratura estadual e logo fui chamada. Assumi a magistratura em 1981 e somente em 1983, a Secretaria de Justiça me convocou. Pedi exoneração da magistratura e fui para a advocacia de ofício ou como eu sempre afirmei: sai da magistratura para ser feliz. Nunca tive competência para julgar os outros.

Formatura em 1977

Você fez parte da criação do Núcleo de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência na Defensoria Pública do Ceará. Como tudo começou e como foi este processo?
Desde a década de 70, eu acompanhava a política interna da Ordem dos Advogados do Brasil – secção do Ceará, onde comecei como estagiária no Tribunal de Ética, em 1975. Ali, uma advogada que era conselheira seccional, que fazia a defesa dos presos políticos, chamava minha atenção pela sua tenacidade na luta contra o regime militar: Wanda Rita Othon Sidou. Eu sequer sabia que o feminismo existia, mas admirava e acompanhava as ações de uma mulher sábia e brava.
 
Foi fácil constatar, então, que poucas mulheres tinham um papel de destaque que ela tinha. Poucas tinham a sua coragem cívica. Sem perder sua doçura, enfrentava os poderosos daquele momento sombrio de nossa história. Eu tinha um tio que também fazia essas defesas de maneira brava – Pádua Barroso – e, graças a ele, eu assistia os julgamentos na auditoria militar. Daí em diante, passei a observar e me interessar pela participação da mulher na vida pública. Em 1986 foi criado o Conselho Cearense dos Direitos da Mulher e logo participei dos eventos e de reuniões, até que, a sua presidenta – Fátima Dourado, convidou-me para uma conversa. Desta conversa saiu a possibilidade de formatarmos um núcleo para o atendimento de mulheres em situação de violência doméstica. Foi assim que surgiu o primeiro núcleo temático da Defensoria Pública do Estado do Ceará. Era o Centro de Orientação Jurídica e Encaminhamento da Mulher – COJEM, instalado no inicio da década de 90.
 
Esse período foi particularmente emocionante e rico: estávamos desenhando um Brasil que tentava andar com suas próprias pernas sem o autoritarismo até então em voga. A sociedade civil decidiu participar dos governos e surgiam conselhos de direitos para as crianças, para os negros, deficientes. Era um novo tempo que chegava.
 
Permaneci no COJEM até ser promovida para o segundo grau, já no final da década de 2000. Durante os anos que trabalhei com as mulheres aprendi a ser uma profissional mais atenta, mais preocupada com a vida delas que com meu salário, mais preocupada com o crescimento da Instituição que com o meu currículo. Enfim, foram anos de um grande aprendizado. Tive chance de participar tanto do processo da constituinte nacional de 1988, como aluna de mestrado da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, como de defensora pública e feminista na constituinte estadual de 1989. Nesta conseguimos incrustar um artigo preconizando a criação do COJEM.
Dados levantados pelo Nudem Fortaleza mostram que as mulheres só passaram a denunciar depois de mais de dez anos vivendo em um relacionamento abusivo. Porque a demora em denunciar?
A realidade das mulheres não mudou muito. O papel da mulher na sociedade patriarcal cristã é uma construção social difícil de desconstruir. O casamento a qualquer preço é um deles. Pela nossa cultura era reprovável uma mulher não casar. Na minha juventude, essas mulheres (que não casavam) eram chamadas de vitalinas, solteironas, mal amadas...como se elas tivessem culpa de não ter um homem que “as quisessem”. O modelo que ficou posto de relacionamento “conjugal” é ruim para as mulheres.
 
O Código Civil de 1916 dizia que o homem era o chefe de família e assim eles agiam. A bíblia católica diz que as mulheres deviam obediência a seus maridos e elas assim faziam. O Código Civil permitia o homem devolver a mulher que não fosse mais virgem após o casamento. Eles devolviam. Vi tudo isso passar diante dos meus olhos e terminamos intervindo em casos nos quais as mulheres sequer eram pobres na forma da lei, como o caso da amiga Maria da Penha, no qual o CCDM muito ajudou. A vulnerabilidade de todas as mulheres era um fato. E persiste.
 
Elas foram socializadas com a obrigação de casar e obedecer seus maridos. Não acreditam quando recebem as primeiras grosserias, o primeiro xingamento, o primeiro empurrão. No geral, elas até se culpam e choram. Tentam durante anos mudar a situação sem sequer comentar com suas amigas mais chegadas. Tem vergonha de si mesma. Claro que existem as exceções, mas poupo-me de falar dessas. 
 
Na maioria das vezes é impossível a mulher vítima da violência doméstica superar sozinha essa situação. Daí a necessidade de politicas públicas que cuidem delas. É preciso emponderá-las, mostrar que elas não são obrigadas a viver nessa violência que, por vezes, mata o corpo e geralmente mata os sonhos e a alma delas. Elas demoram a denunciar com a esperança que o marido mude. Elas não querem se separar, querem um marido bom.
Como conscientizar a mulher vítima de violência?

Creio que a palavra certa não é conscientizar, é empoderar. Elas devem ser informadas e formadas sobre seus direitos e cabe a elas a decisão. Geralmente elas se negam a processar o pai dos filhos delas, pois nessas horas, superada a possibilidade de nova agressão imediata (com a intervenção do Estado), o que conta são os filhos. Elas tentam salvar o que restou. Senti uma grande mudança nos anos seguintes a promulgação da Lei Maria da Penha. Foi somente aí que o Estado passou a dispor de meios mais efetivos para intervir no lar violento e as informações fluíam Brasil afora. Muitos agressores foram processados e presos. Teve um recuo na violência doméstica e familiar logo após 2006, no Ceará. A violência voltou mas, agora, as razões são outras.

Já os dados do Nudem de Cariri, 49,2% dos casos o agressor, geralmente o ex-companheiro, já responde por crimes previstos na Lei Maria da Penha e em 98,9% este homem encontra-se em liberdade. Porque o agressor não permanece preso?
O Cariri é um caso a parte. Em função da minha militância, fui a primeira Coordenadora Especial de Políticas Públicas para as Mulheres do Estado do Ceará. Nesta condição, fui muitas vezes ao Cariri e constatei o “modus vivendi” de um povo que tem como mito o Padre Cícero Romão Batista, e como uma grande injustiçada, a beata Maria de Araújo. Juazeiro do Norte, particularmente, é um centro de peregrinação religiosa. No Crato, município vizinho, o Conselho Municipal das Mulheres avançava sempre e fez um belo trabalho. No Juazeiro tudo era sempre mais difícil. Vencer os preconceitos seculares da servil obediência feminina sob a batuta da igreja católica é mais duro. Não podia ser diferente, tá na bíblia. Veja que ainda é uma das poucas religiões que não admite internamente a ascensão das mulheres. Não existem, como nas outras, mulheres bispas, cardealas, etc.. Elas devem permanecer como a mãe de Cristo: puras e imaculadas. É esse o modelo. O atual Papa, o Francisco, tem tentado aproximar sua igreja do povo, mas a Cúria Romana é a Cúria Romana. Não podemos deixar de contextualizar uma mulher quando cuidamos dela. É preciso saber não só da sua história de vida, como da história da sua “aldeia”.
 
Os crimes contra as mulheres sempre foram de “menor potencial ofensivo”, vez que a vítima da agressão era uma sujeita de segunda categoria. Muitos ainda pensam assim. Eu ouvi juízes e juízas perguntarem as vítimas, em audiências, o que elas tinham feito para apanharem tanto. Como se algo em seu comportamento justificasse o “estrago” feito por seus companheiros. Ouvi promotores afirmarem que o homem não tinha “batido” na mulher e sim no seu atrevimento. Muito disto persiste nos dias de hoje, dai o Poder Judiciário e o Ministério Público não darem tanta importância para crimes contra as mulheres, salvo as exceções (conheço magistradas(os) e promotoras(es) que estão no “front” das lutas com muita garra). Mudar uma cultura requer um grande trabalho e muito tempo.
O agressor, em 35,8% dos casos, também conviveu com a violência doméstica enquanto criança. Como este dado pode refletir sobre o ciclo de violência?

Ainda bem que temos as Universidades como parceiras desde o início das lutas. São as pesquisadoras e as professoras que têm respaldado nossas lutas com dados, com números e estatísticas. Pessoas com Sílvia Pimentel, Débora Diniz, Florisa Verucci, Mônica Melo e dezenas de outras (estou, com certeza, esquecendo o nome de muitas companheiras preciosas para a luta) que legitimavam nossas ações nos governos e na sociedade civil, justificando-as. Foram algumas delas que estudaram o passado de agressores e constataram que muitos deles tinham sofrido agressões em casa. Eu repito sempre que o modelo que exclui a mulher das decisões familiares é um modelo violento.

Quando só o homem manda, ele tem que “matar” a mulher como participante ativa da família e tem que legitimar-se no poder. No geral, só com a força eles conseguem. As relações familiares são relações políticas, humanas. Repetimos aí aquela história popular: o homem bate no cachorro, que bate no gato, que come o rato. No caso das famílias assumidamente violentas, quem mais sofre são os filhos. Foram socializados na violência e vão querer resolver seus problemas no grito. Repetem o modelo que conheceram. Daí a necessidade de politicas públicas que cuidem dessas vítimas.

Você também ajudou na construção da Lei Maria da Penha. Como ela cumpre auxilia a mulher vítima de violência doméstica e familiar? Como foi a construção da Lei?
Várias instituições, no Ceará, empenharam-se no cuidado com o caso da Maria da Penha. Lembro especialmente de duas das quais eu participava: a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, na qual eu representava a Defensoria Pública estadual e o Conselho Cearense dos Direitos da Mulher, onde eu coordenava o COJEM. Foi no desenrolar de seus trabalhos que surgiu a chance de denunciarmos o caso na Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), por intermédio do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM ) - (duas ONGs acreditadas pela OEA). Uma das recomendações que o Brasil recebeu a partir do caso Maria da Penha foi a de elaborar uma lei que proibisse a violência doméstica e familiar contra as mulheres. A Secretaria Especial de Politicas para as Mulheres da Presidência da República, na época sob a gestão de Nilceia Freire, orquestrou a efetivação da lei com a ajuda de um consórcio de ONGs nacionais. Algumas defensoras públicas participaram duramente deste momento histórico, como nossa querida Rosane Lavigne, do Rio de Janeiro.
 
Com a Maria da Penha
 
Outra recomendação da OEA foi que o Brasil pagasse uma indenização em dinheiro e prestasse uma homenagem a Maria da Penha pelo sofrimento que ela passou e pela negligência do estado ao cuidar do caso dela. O governador Cid Gomes pagou a indenização e o Estado brasileiro, ouvindo as mulheres, homenageou-lhe nominando a Lei 11.340, Lei Maria da Penha, que entrou em vigor setembro de 2006.
 
 
Recebendo homenagem na Assembleia Legislativa do Ceará (2015)
Conte um caso que te marcou
Tive centenas de casos que me marcaram muito, mas desenvolvi em mim o mesmo processo de grande número de minhas assistidas: esqueço da dor e lembro das vitórias. Quantos agressores tiramos de casa, quantos filhos e filhas foram devolvidos a suas mães, quantas separações, desquites, divórcios conseguimos “ganhar” ao longo de tantos anos? Cada um deles valeu por tudo. Cada mulher libertada do julgo patriarcal de um marido violento era uma vitória coletiva. Asseguro que tivemos mais vitórias que fracassos.
 
Lembro das assistidas que se foram, em meio a um processo litigioso infernal, morta pelo marido que se julgava ultrajado por ter sido “expulso” da violência que o “legitimava” como dono da casa e chefe da família. Eram horas de trabalho duro que findavam, com a foto delas nas páginas dos jornais ou com notícias nas rádios.
 
Eu só percebi a importância desses trabalhos quando passei a ser chamada para dar entrevistas. Fui convidada para escrever em jornais, participar de programas de televisão e passei a receber prêmios da Câmara Municipal, da Assembleia Legislativa, do Senado Federal, da OAB e de entidades da sociedade civil.
 
Ainda não são todas as Defensoria Pública que têm núcleos específicos para as mulheres. Por onde devem começar e qual a importância desse atendimento prioritário?

As Defensorias estaduais estão passando por um momento de crescimento, mas chegará uma hora que teremos que agir nacionalmente, como alguns grupos aqui e ali já têm feito. Penso que o primeiro passo para isso foi dado aqui em Brasília, com a criação do Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias distrital e estaduais nos Tribunais Superiores – GAETS, do qual tenho um orgulho grande de participar.

Assim também penso que as unidades federadas necessitam inicialmente criar seus núcleos temáticos para amadurecer a Instituição em relação aos direitos dos diferentes segmentos sociais: criança, mulheres, homossexuais.  A prioridade é do povo em suas diferenças, que somente nos últimos anos têm tido visibilidade. A forma de invisibilizar é a pior maneira de descriminar o diferente. Já ouvi muito dizer que lá no Ceará não tem negro. Oi!! Como assim? Acho importante que as Defensorias criem esses núcleos e capacitem os defensores nas diferentes agendas do povo brasileiro. Tenho medo, entretanto, que fique um grupo especializado em direitos das mulheres, outro em direitos das crianças e que nunca conversem entre si. Há de se ter muito cuidado na formatação dos diferentes grupos de atendimento. Não podemos esquecer que temos o privilégio de promover os direitos humanos, logo devemos ser bons nisso. E somos!

Sabemos que do sistema de Justiça, a Defensoria Pública é o órgão que conta com mais mulheres defensoras públicas do que homens. Acredita que isso se deve a o que?

Como falei anteriormente, o papel da mulher é uma construção social. Algo desde sempre atribuído a mulher é o cuidar dos outros. Aprendemos, com as bonecas desde cedo que devemos cuidar de bebês. Depois aprendemos que temos que ter filhos e cuidar deles, cuidar do marido, cuidar da família do marido, enfim, cuidar. A Defensoria Pública, neste sentido, é uma extensão do trabalho da mulher: ela cuida dos excluídos. Na minha juventude as mulheres iam para a medicina ser pediatras, iam para a pedagogia ser professoras primarias, iam ser enfermeiras, enfim, iam cuidar. A Defensoria atrai muitas mulheres porque cuida. Somos, pois, neste prol, uma instituição feminina. Falar numa atividade estratégica nas Defensorias é coisa recente e ainda falta muito caminho pela frente.

Livro lançado pela defensora pública em 2000 

Na sua opinião, qual a importância da paridade de gênero nos ambientes profissionais e educacionais?

Paridade de gênero deve ser garantida porque no mundo existem humanos diferentes e a todos devem ser assegurados o direito a voz. Quando o Projeto Genoma asseverou que não existem diferentes raças, mas somente a raça humana com sua diversidade de etnias e modo de ser, mostrou-nos que o que nos enriquece é sermos diferentes. Daí a riqueza de assegurarmos em todos os ambientes: escolar, de trabalho...

Também com atuação nos Tribunais Superiores e fazendo parte do GAETS, como é, diante de tribunais, na sua maioria composta por homens, defender a causa do assistido(a)?
 
 
Falar do trabalho das Defensorias Públicas estaduais e distrital nos Tribunais Superiores é um capítulo importante na minha vida. A sensação que tenho tido é a mesma que tive na década de 90 quando saia peregrinando nas instituições públicas para falar em Defensoria Pública: muitos ainda não conhecem, ainda não entendem.
 
Por justiça devo prestar homenagens aos colegas Fábio (RJ), Thais (RJ), Calmon (DF) e Muneratti (SP) que pensaram anteriormente numa forma de integrar o grupo que defensores estaduais que vinha para as representações em Brasília e fazer um trabalho conjunto. Nosso sonho continua sendo ter todos os Estados aqui representados e num prédio só.
 
Trabalhar com 33 ministros no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e 11 no Superior Tribunal Federal (STF) não é fácil, e temos que considerar que no geral, são homens e mulheres que vieram de uma classe privilegiada e que desconhecem de fato o que significa viver na pobreza, como de resto acontece com a elite brasileira. Mas o GAETS tem feito um belo trabalho. Quando o STF passou a acolher-nos como amicus de algumas ações, constatamos que nosso trabalho estava indo no rumo certo. Criamos um termos de adesão para o Estado que aqui chega, institucionalizando-nos. Reunimo-nos constantemente para decidirmos onde e de que forma vamos enfrentar tal e qual problema, seja dos assistidos, seja de importância institucional.
 
Para mim, como a decana da turma, é emocionante constatar como chegamos tão longe, seja pelo saber jurídico dos colegas, seja pela paixão brilhando nos olhos para entrar numa luta. Todos se ajudam e todos se gostam. Existe um afeto institucional que nos une e em alguns casos passa para o pessoal. Na hora da luta nenhum almeja o brilho para si e sim para a Defensoria. Mas é claro que encontramos coisas inacreditáveis. É raro notar que há diferença entre ser homem e ser mulher nos Tribunais Superiores.
 
 
Dia desses eu conversava com um ministro reconhecidamente sabido em Direito Constitucional que dizia-me que Defensoria Pública só deveria existir para o crime, como nos Estados Unidos. Doeu. Eu não tinha como discordar. Ele disse e saiu da conversa. Mas dia desses um colega, sem saber, deu uma grande resposta na tribuna e ele ouviu com interesse. Nossos recados têm que ser dados aqui, pessoalmente. Daí a importância de estarmos presentes nos Tribunais Superiores, que criam os precedentes que devem pautar nossas agendas.
 
Infelizmente, têm Estados que ainda não entenderam e acham que a grande solução é colocar defensores na ponta, junto ao povo. Só. Claro que estar ali é fundamental, mas estar aqui em Brasília nos propicia desenhar a trilha que aquele(a) que lá está deve seguir. Se é que pretende lutar até o fim, até o STF pelos nossos assistidos. Mais importante, entretanto, que a experiência e o saber jurídico, é o aprendizado político.
 
Em Brasília, o jogo polìtico fica mais nítido, mais próximo. O GAETS já tem esse entendimento, mas diariamente aprendemos mais e mais: seja no despacho ordinário com os senhores ministros, seja nas tribunas sustentando, seja nas conversas sociais dos lançamentos de livros, nas audiências públicas... Enfim, estamos tentando dar às Defensorias estaduais e distrital o merecido papel que elas devem ter, pois cuidam da maioria do povo deste país.
 
 
Você já sofreu situações de assédio ou desrespeito por ser mulher? Conte.

Sofri o que todas as jovens mulheres que saíram de casa para a vida pública sofreram na minha época. Na faculdade de Direito já existiam professores conhecidos por assediar alunas com “cantadas” indignas. Professores casados que namoravam com alunas solteiras, jovens e belas não era raro. Lembro de dois professores meus que se insinuaram, mas eu era muito atrevida. Desistiram cedo. Comecei a frequentar o fórum, ainda como estagiária da Defensoria Pública. Foi a vez dos defensores, advogados, juízes e promotores, todos assediavam. Era comum. Mas apenas um juiz foi de fato grosseiro e vulgar na “cantada”. Lembro da cara dele com um sorriso nojento no rosto certo que ia “ganhar” a jovem estagiária. Deu-se mal. Sequer tínhamos coragem de contar as colegas o que acontecia. Parecia que eramos nós as culpadas; que nós que nos insinuávamos. Nunca fui vítima de coisas mais graves, como ouvi, posteriormente, muitos casos de colegas que passaram por constrangimentos graves.

A ANADEP tem 35 anos de existência. Desde então, tivemos na presidência da Associação apenas duas mulheres. Qual o papel da mulher à frente de uma Associação Nacional?
Fazer política significa necessariamente fazer parte de um grupo. Ninguém é candidata(o) sozinha(o) a nada. Nos grupos de atividades politicas, sejam partidárias, sejam institucionais, geralmente a maioria é composta de homens, por motivos óbvios. Daí as mulheres nunca estão em pé de igualdade, ou seja, sempre eles determinam as regras do jogo, eles determinam e eles elegem. No Ceará, existe uma peculiaridade: só tivemos até hoje apenas um defensor público-geral. Sempre foram as mulheres eleitas para tal cargo. Na Associação também, as mulheres sempre estiveram presentes em grande número, inclusive eu que a presidi no século passado.
A atual gestão da ANADEP prezou pela paridade de gênero. Há 17 diretoras e 17 diretores na chapa. Qual a importância desta formação?

Acompanhei de perto as AGEs da ANADEP na gestão passada e vi o trabalho que se fez para manter um certo equilíbrio entre os gêneros. Nós não podemos ficar só no discurso. Temos que ir para a prática. Fiz a sustentação na AGE que mudou o nome de nossa Associação Nacional. Não podíamos continuar sendo Associação dos Defensores. A OAB ainda não conseguiu e é mais antiga que nós. A direção do Conselho Federal ainda é composto só por homens. Semana passada fui uma das palestrantes na III Confêrencia da Mulher Advogada, que aconteceu em Fortaleza. Elas estão se articulando politicamente, mas eles ainda são mais fortes e ainda não admitem as colegas nos postos decisórios. Fazem discursos neste sentido, mas na prática não aprovam as advogadas na direção do Conselho Federal. O que a ANADEP faz é o que deve ser feito, somos mulheres e homens, Defensoras e Defensores.

Em 2019, o tema da campanha da ANADEP foi Em Defesa Delas. Qual foi a importância de trabalhar este tema nacionalmente?

O tema foi “Em Defesa Delas” porque lutamos pra isso. A Comissão dos Direitos da Mulher da ANADEP lutou bravamente para isso. Eu estava em sua composição e acompanhei as lutas. Não existe divisão de poder ou cessão de poder. Os homens jamais nos darão lugares. Temos que ganhar esse espaço e isso só com luta. Temos que nos engajar nas lutas institucionais e não apenas cuidar dos direitos de nossos assistidos nos foros e tribunais. O respeito ao direito dos assistidos(as) devem ser defendidos por uma Instituição respeitada por suas ações políticas também.

Nosso contato com o mundo da política partidária é umbilical, já que são os parlamentares que resolvem o preço do aluguel, o número de leito nos hospitais, e se a Defensoria tem ou não mais defensores para atender o povo. Não podemos nos apartar, seja da política institucional, seja da politica partidária. Neste sentido tentei a candidatura à deputada estadual em 2006. Quem cuida do povo não pode viver numa gaiola estudando direito para fazer uma bela defesa. Tem também que ir pra rua sentir o cheiro do povo e ouvir sua fala. Nisso as mulheres têm mais aptidão, pela criação, que os homens. Por isso não temos só homens tocando nossos destinos institucionais. Temos Pedro Paulo Coelho e temos Rivana Ricarte. É assim que queremos ser, é assim que somos. 

Comissão dos Direitos da Mulher da ANADEP, com a coordenadora da Comissão, Rita Lima. (Rio de Janeiro, 2018)

Por fim, qual a sua mensagem para o mês da Mulher?
Mês de mulher é apenas um chamado. É para lembrarem de nós. Mas devemos refletir sobre o muito que ainda temos que caminhar. Precisamos rever nossas estratégias para o Brasil de hoje onde as conquistas estão sendo ameaçadas. Onde o Presidente da República diz que teve quatro filhos, vacilou e teve uma mulher. Onde uma Ministra da pasta, diz que homem deve usar azul e mulher rosa. As mulheres partiram daí no século passado para as conquistas que tiveram, mas o século passado insiste em voltar no Brasil de hoje. Devemos estar atentas e fortes e não admitir os retrocessos que parecem querer vir. Mas penso e repito com o poeta: Eles passarão, e nós passarinhas.
 
As atividades em Brasília e Fortaleza não me permitem uma agenda mais frouxa. Tudo é pra ontem. Já peço desculpas, pois com certeza esqueci nomes valiosos e troquei datas. A idade já favorece e tive pouco tempo pra responder tudo. 
 
Acredito que a arte sempre foi e será um ponto de resistência. Não podemos nos afastar da poesia, da literatura, do teatro, da pintura. Lembro, neste Brasil de hoje de um poema que sempre foi importante na minha vida:
 
Nada é impossível de mudar
 
Bertolt Brecht
 
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural.
Pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural.
Nada deve parecer impossível de mudar
 
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