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Nº 23 - 07 de outubro de 2014
Renato de Vitto
O atual diretor do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN/MJ), Renato de Vitto, abrirá os trabalhos do IV Seminário da Escola Nacional dos Defensores Públicos - ENADEP, que será realizado nesta quinta (9) e sexta-feira (10), no Hotel Blue Tree Towers, em Florianópolis (SC). Com o painel "O Papel do defensor público no combate ao encarceramento em massa", De Vitto contextualizará a atuação da Defensoria e sua importância como órgão de execução penal na atual conjuntura da política criminal e penitenciária brasileira. 
 
Segundo o diretor, investir na estruturação da Defensoria é uma das respostas mais eficazes aos efeitos colaterais do superencarceramento. "A presença do defensor público no ambiente prisional tem o condão de inibir maus tratos e torturas, demonstrando ao preso que o Estado-providência também está ali presente, que seu processo não será esquecido, e que todas as medidas para que ele cumpra o tempo de pena previsto na legislação estão sendo adotadas. Isso tem um grande potencial de pacificação do ambiente prisional", afirma.
 
Em entrevista exclusiva à ANADEP, ele adianta que tratará ainda sobre o número excessivo de prisões provisórias no país, apontando a necessidade de  pensar num modelo de reintegração social do preso a partir de um foco de gestão prisional que não veja o cárcere como uma instituição total.
 
Perfil: Classificado no primeiro Tribunal do Júri da Capital, De Vitto exerceu funções de subdefensor público-geral e coordenador-geral de Administração da Defensoria Pública de São Paulo. Ele foi procurador do Estado de São Paulo entre os anos de 1998 a 2003 e assessor da Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça (SRJ/MJ) no período de 2003 a 2005. Consta ainda em seu currículo a presidência da Comissão de Justiça e Segurança do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. É autor de artigos sobre o acesso à Justiça e Segurança, Justiça Restaurativa, Direito Penal e Segurança Pública.
"Defensor criminal que não exerce suas funções com frequência e habitualidade no interior do cárcere é um defensor público pela metade. Justamente pela distância que mantém em relação à população mais vulnerável a que deve assistir"
ANADEP - 
O senhor abrirá o IV Seminário da ENADEP em Florianópolis, SC. Poderia nos adiantar um pouco da sua fala aos defensores no próximo dia 9?
Pretendo contextualizar a atuação da Defensoria, falar da sua importância como órgão de execução penal na atual conjuntura da política criminal e penitenciária brasileira. Acho muito importante o engajamento dos defensores no projeto “Defensoria no Cárcere”, uma parceria que está sendo construída entre o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria de Reforma da Judiciário e do Departamento Penitenciário Nacional, ANADEP, ANADEF, DPU, CONDEGE, além do CONSEJ – Conselho dos Secretários de Justiça, Cidadania e Administração Prisional. Nessa parceria, traçamos em conjunto as diretrizes técnicas mínimas para a atuação da Defensoria em três frentes: a defesa individual do preso provisório, a defesa individual do condenado e a inspeção dos estabelecimentos penais.
 
Estamos firmando o entendimento de que toda a força de trabalho dos órgãos da Defensoria que tenham atribuição criminal deve implicar atuação direta no ambiente carcerário. Esta presença no cárcere abrange o papel de fiscalização e inspeção dos estabelecimentos e dos serviços penais, mas deve abarcar também o atendimento jurídico individual dos presos, provisórios e condenados. Vale ressaltar que as demandas por assistência jurídica ainda são uma das denúncias mais frequentes por parte das pessoas privadas de liberdade e, embora o efetivo da Defensoria ainda esteja muito aquém do desejável, o atendimento a essa população extremamente vulnerável deve ser uma das primeiras prioridades das instituições. Com todo o respeito, mas com o olhar que 16 anos de atuação no atendimento jurídico a presos me conferiu, arrisco afirmar que defensor criminal que não exerce suas funções com frequência e habitualidade no interior do cárcere é um defensor público pela metade – justamente pela distância que mantém em relação à população mais vulnerável a que deve assistir. Estudos recentes já apontaram a ausência de assistência jurídica efetiva no cárcere como uma das razões para o número excessivo de presos provisórios no país. Acredito que com o projeto “Defensoria no Cárcere” seremos capazes de enfrentar também esse problema.
 
E acredito que apenas a partir desta atuação de "chão de fábrica" ou "chão de cadeia", a Defensoria Pública irá se legitimar materialmente para ocupar de fato o papel de agente político que desempenhará com uma importante voz dissonante contra o punitivismo e o superencarceramento que tem se mostrado uma opção política ineficaz para redução da violência e criminalidade, com um custo financeiro e social insustentável para o Estado brasileiro.
No último dia 10 de setembro, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) debateu a situação das prisões no Brasil. Durante o encontro, o grupo apresentou documento que relata os problemas dos presídios no país: superlotação, dificuldade de acesso à Justiça pelos presos, uso indiscriminado de prisões provisórias, estrutura inadequada, entre outros. O texto critica o uso, considerado excessivo, da pena da privação de liberdade, e mostra que ela está sendo aplicada como o primeiro recurso em vez do último, como seria exigido pelos padrões internacionais de direitos humanos. Como o senhor vê esta situação?
Por uma série de razões históricas políticas e sócio-culturais, a política prisional não tem recebido a atenção necessária por parte dos gestores públicos e da sociedade em geral. No entanto, o crescimento exponencial da população carcerária no Brasil, em especial nas últimas duas décadas, vem desvelando realidades dramáticas nas mais distintas Unidades da Federação, com uma frequência crescente e preocupante. Penso que o tema está entrando definitivamente na agenda política brasileira e deve constituir uma das pautas mais relevantes dos próximos anos.
 
O enfrentamento dos tantos problemas que são causa e conseqüência do superencarceramento exige a adoção de medidas que envolvam todos os Poderes, em diferentes níveis da Federação, além de uma atuação da sociedade civil. Por isso a questão situação prisional é, sem sombra de dúvida, um dos problemas mais complexos da República.
 
A interrupção desse processo de encarceramento em massa exige o fomento à aplicação das alternativas penais, sobretudo das medidas cautelares diversas da prisão. Temos observado o uso absolutamente excessivo da prisão provisória, mesmo após a entrada em vigor da Lei 12.403, que coloca a prisão como última alternativa de acautelamento.
 
Estudo realizado pelo DEPEN em parceria com IPEA, que será publicado em breve, aponta um cenário alarmante: em quase 40% dos casos em que o réu cumpre prisão provisória, não há condenação à pena privativa de liberdade ao final do processo – casos em que os réus são absolvidos ou condenados a penas alternativas, por exemplo. Temos que apresentar resposta urgente a essas prisões, que representam um custo financeiro e social enorme. A própria utilização de mecanismos de monitoração eletrônica, como alternativa ao desencarceramento e não como mero aumento do controle, é uma das estratégias que devem ser ampliadas de forma inteligente, para que possamos de fato emprestar à prisão provisória um caráter excepcional e para que a pena de prisão seja exclusivamente destinada aos crimes graves.
Como o senhor avalia as políticas de ressocialização dos apenados no Brasil e a atuação da Defensoria Pública neste contexto?
O conceito de ressocialização é um conceito datado que deve ser visto com reservas. Com o declínio do “welfare state” e, por via de conseqüência, do chamado “welfarismo penal”, associado aos altos índices de reincidência da população egressa do sistema penitenciário, somos conduzidos à reflexão sobre se é realmente possível se pensar em ressocialização a partir do ambiente carcerário. Me parece mais adequado assumirmos que o processo de encarceramento sempre deixa marcas negativas nos indivíduos privados de liberdade e que compete ao Estado, por meio da efetivação das assistências que deve prestar para o preso e para o egresso, atenuar tais consequências negativas, seja por imperativo civilizatório, mas também por comando constitucional, legal e das normas internacionais que regem o tema.
 
Se há muito as regras mínimas da ONU para tratamento dos reclusos estabelecem que a pena privativa de liberdade deve alcançar apenas o direito de locomoção dos indivíduos, não tendo o condão de desintegrar a sua identidade e seus demais direitos. Cabe observar que a ausência de efetivação dos direitos das pessoas privadas de liberdade retroalimenta um ciclo de exclusão que favorece a reincidência, abrindo flanco para a estruturação de organizações criminosas a partir do ambiente carcerário. Este é o pano de fundo de um círculo vicioso que criou a ambiência necessária para a consolidação de facções que expandiram suas atividades para além das muralhas do cárcere, demonstrando que a política de encarceramento em massa fracassou no enfrentamento da violência e da criminalidade.
 
Pensar num modelo de reintegração social do preso a partir de um foco de gestão prisional que não veja o cárcere como uma instituição total, um microcosmo dissociado do macrocosmo social, mas que traga os olhos da sociedade para o interior dos perímetros das prisões, é um grande desafio, mas, em meu sentir, o único caminho para começarmos a desarmar as bombas-relógio que se criaram nas prisões. Sempre tendo em vista, porém, que o cárcere por si só tem uma natureza desintegradora, devendo-se preferir alternativas penais sempre que possível, em crimes menos graves ou praticados sem violência.
 
Nesse contexto, a Defensoria exerce papel de proeminência enquanto órgão da execução penal e, de um espaço que lhe permite uma escuta privilegiada dos réus presos e familiares, pode constituir um importante elo de ligação.
Este ano completamos 22 anos do massacre do Carandiru - a maior chacina da história das penitenciárias brasileiras, com a morte de 111 detentos. A Casa de Detenção foi considerada um dos grandes problemas do sistema prisional brasileiro por sua história de mortes e de rebeliões. Na época uma parcela da sociedade não se chocou com a brutalidade do massacre, porque eram presos. O senhor acha que atualmente a mentalidade da população brasileira tem mudado? O senhor acha que o conceito de direitos humanos no Brasil, das pessoas presas, tem sido mais compreendido?
A sociedade brasileira e mundial ainda lida com muitas dificuldades com a violência e com as condutas rotuladas como crime, cultivando uma ilusão de que a “guerra ao crime” seja o caminho adequado para extirparmos esse câncer social. Na lógica da guerra, que permeia a construção das políticas tradicionais de segurança pública, o que importa é identificar o inimigo e abatê-lo. Ocorre que não vivemos em guerra e o nosso Estado de Direito não se compraz com a violação de direitos fundamentais em nome da segurança. No entanto, o senso comum entende que “bandido bom é bandido morto” e isso é demonstrado pelo silêncio sorridente da sociedade ao episódio do Carandiru.
 
Talvez em razão do individualismo, enquanto característica da pós-modernidade e da atual fragmentação do tecido social, não conseguimos nos aperceber que o cometimento de um delito não é um ato isolado, urdido por uma mente voltada para o crime (como se pensava até a superação do positivismo). Os atos de violência e as condutas tipificadas como crime, embora multicausais, têm razões sociais e terão inevitavelmente conseqüências sociais. O punitivimo se estruturou na mentalidade do homem médio a partir de preceitos culturais que se acomodam e se sobrepõe em profundas camadas ao longo da História e, talvez, uma mudança de mentalidade que consagre a superação do punitivismo e retributivismo demore décadas ou séculos ainda.
 
No entanto, é necessário que a partir do espaço de atuação da Defensoria Pública consigamos dar visibilidade ao problema das prisões. É preciso dar visibilidade à dimensão humana e às desastrosas conseqüências que a reação estatal ao crime vem trazendo. Somente a partir desta visibilidade, e a partir da demonstração de que é possível uma resposta mais qualificada do Estado, poderemos atenuar o senso comum punitivista fazendo prevalecer a dimensão civilizatória que a tutela dos direitos humanos vêm tentando consagrar. As cobranças contínuas de estrita observância dos direitos das pessoas privadas de liberdade devem se transformar em políticas e práticas de gestão capazes de evitar novos “Carandirus” e novas “Pedrinhas”.
Santa Catarina vem, nos últimos dias, registrando uma série de ataques a ônibus e prédios do governo, ações que teriam sido comandadas por presos do regime fechado. No que o senhor acredita que o investimento em mais defensores públicos para o atendimento nas casas prisionais poderia aplacar movimentos como este, na sua maioria motivados por más condições de encarceramento ou abandono por parte do Estado no que se refere ao acompanhamento do cumprimento das penas?
Como afirmei, a precariedade da prestação da assistência jurídica é um dos problemas apontados com maior freqüência por parte da população privada de liberdade. O fortalecimento da Defensoria Pública e a sua presença no cárcere, seja na defesa individual dos presos, seja enquanto órgão de execução penal, na fiscalização das condições de aprisionamento e na fiscalização da política penal  adotada pelos Estados, é medida de fundamental importância para aplacarmos as crises que se têm verificado em distintos Estados na área carcerária. 
 
A presença do defensor público no ambiente prisional tem o condão de inibir maus tratos e torturas, demonstrando ao preso que o Estado-providência também está ali presente, que seu processo não será esquecido, e que todas as medidas para que ele cumpra o tempo de pena previsto na legislação estão sendo adotadas. Isso tem um grande potencial de pacificação do ambiente prisional. Por isso creio firmemente que os gestores estaduais devem seguir investindo na estruturação da Defensoria Pública como uma das respostas mais eficazes aos efeitos colaterais do superencarceramento.
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