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Nº 010 - 22 de novembro de 2018
Elisabete Aparecida Arruda Silva
Mais de 54% da população brasileira é negra ou parda. Apesar do número expressivo, a representatividade dela nos espaços de poder e nos centros de ensino (escolas, faculdades, cursos e outros) é muito baixa, o que evidencia a desigualdade racial  no País.
 
Na semana em que se celebra o Dia Nacional da Consciência Negra, a equipe de comunicação da ANADEP conversou com a defensora pública do Paraná Elisabete Aparecida Arruda Silva, mais conhecida como Betinha. Na Defensoria Pública desde 2013, ela ingressou na Instituição pelo sistema de cotas. No Histórias de Defensor(a), ela fala sobre a difícil trajetória de uma mulher negra da periferia e como ela se identifica com os usuários da Instituição.
 
Atualmente, à frente da Vara de Adolescentes em Conflito com a Lei, Betinha desenvolveu um dos trabalhos mais marcantes em sua atuação. O projeto com música é voltado para os jovens e visa proporcionar aos adolescentes um contato direto com cultura, instrumentos e à uma profissionalização. 
 
Também sobre cultura, ela fala sobre o samba, que trouxe uma forte ligação ao seu povo e ancestralidade. A defensora pontua que no ambiente da escola de samba, por exemplo, as diferenças não importam. Ela já saiu como princesa de bateria e na comissão de frente. "Não existe emoção maior do que estar num espaço onde você simplesmente pode ser quem é independente da cor de sua pele", afirma. 
 
Confira abaixo a íntegra da entrevista:
 
ANADEP - 
Há quanto tempo você é defensora pública? Como foi seu ingresso na carreira? O que te motivou a entrar na Instituição?
Sou defensora pública desde 2013. Ingressei na carreira no I Concurso para Defensoras e Defensores Públicos do Estado do Paraná, pelo sistema de cotas raciais. Nasci em uma família de poucos recursos financeiros, com muitos valores éticos e morais. Meus pais possuem pouca instrução. Minha mãe estudou até a 4ª série e meu pai estudou até a 8ª série do ensino fundamental. Sou filha de mãe negra e pai negro, porém as questões sociais e raciais nunca foram tratadas no ambiente familiar, tampouco na escola, pois os professores eram omissos sobre tais questões. Assim, passei minha adolescência toda ignorando os motivos que geravam as desigualdades.
 
Quando comecei a estudar Direito houve uma ruptura nesse quadro e os questionamentos surgiram. No terceiro ano da faculdade comecei a estagiar na Defensoria Pública do Estado de São Paulo e encontrei ali o meu lugar. Senti que pertencia à Instituição e ao trabalho que realizava. Me identificava com cada usuário, suas dores, suas lutas. Percebi, então, a importância da Instituição num contexto social como o do nosso país, funcionando como instrumento de transformação da sociedade na efetiva erradicação das desigualdades. E a partir de então, ser defensora pública se tornou meu sonho.
Você foi uma das únicas alunas negras no curso de direito da PUC. Como era o seu dia a dia na faculdade? Em algum momento você passou por alguma situação de racismo na instituição e/ou se sentia desconfortável no ambiente?
Quando iniciei a graduação em Direito ainda não estava estabelecido o sistema de cotas raciais nas universidades. Eu era a única aluna negra da minha sala e sentia que era tratada com diferença, mas não sabia exatamente o porquê. Meu dia a dia era bastante corrido. Eu trabalhava das 8hs às 17hs, estudava das 19hs às 23:15hs. Além disso, para ir da faculdade pra casa era necessário pegar dois ônibus, precisava muitas vezes sair mais cedo para não perder o último ônibus.
 
Em relação ao racismo, ocorre que durante o curso foi a época que comecei meu processo de reflexão. Sei que esse processo é diferente para cada pessoa. Eu vejo pessoas negras que não têm consciência da negritude. Sabem que a cor da pele é escura, mas acham que isso não afeta absolutamente em nada em nenhuma relação da vida delas e isso é uma forma de defesa. Não é porque nascemos negros que nascemos conscientes, é um processo de reconhecimento.
 
Naquela época ainda que não tinha plena consciência do racismo, sentia indignação, por exemplo, quando falavam que eu não parecia aluna de Direito, achavam que eu fazia Serviço Social ou Pedagogia, que eram cursos mais ‘populares’, no sentido de acessíveis a todas as camadas da população. Depois de um tempo percebi que as especulações se davam tão somente pelo fato de eu ser negra estudando num curso ‘elitizado’, como o Direito.
Você entrou na DPE pelo sistema de cotas. Como você avalia a polêmica no Brasil em torno deste tema e por que é importante o sistema de cotas no ensino superior, por exemplo?
As ações afirmativas são imprescindíveis para oportunizar à população negra o estabelecimento de uma situação de igualdade material, já que o problema da disparidade é histórico e somente pode ser amenizado por mecanismos que gradativamente viabilizam o acesso do negro à graduação, ao serviço público e quaisquer outras áreas carentes de representatividade racial por anos em razão dos tentáculos cegos da meritocracia. O Brasil é um país de sociedade racista, em que pese tenha grande parte de sua população negra. O preconceito da sociedade brasileira está enraizado também no pobre. Daí o contexto vai de mal a pior, remonta à escravidão. O negro, sem oportunidades, é pobre e não tem as mesmas oportunidades. Daí a necessidade das ações afirmativas como o sistema de cotas no ensino superior, por exemplo.
 
Além de viabilizar a graduação, as ações afirmativas têm o condão de efetivar a representatividade do negro em todas as áreas profissionais, quaisquer cargos, retirando um estigma cultural que veio se arrastando desde a escravidão de que a população negra está ligada a trabalhos braçais e de pouca instrução intelectual.
Hoje você atua na Vara de Adolescentes em Conflito com a Lei e deve ouvir e acompanhar muitas histórias de crianças e jovens que estão em situações extremas de vulnerabilidades. Como você avalia a proposta de reduzir a maioridade penal?
Infelizmente a opinião do senso comum é baseada em teses puramente punitivistas, que orbitam acerca de uma suposta ‘impunidade’ trazida pelo microssistema infracional do Estatuto da Criança e do Adolescente. Porém, reduzir a maioridade penal não terá efeito prático algum além do encarceramento em massa de pessoas que ainda estão em desenvolvimento. A sociedade como um todo não tem o conhecimento necessário a respeito das funções das medidas socioeducativas e dos objetivos preconizados pelo ECA e, isso, é uma falha do poder público, que deveria divulgar de maneira mais efetiva o viés socioeducativo do microssistema, o que é imprescindível para justificar a manutenção da maioridade penal aos 18 anos.
 
O risco da proposta legislativa que reduz a maioridade penal ser aprovada é evidente, tal qual, a ignorância da população quanto à socioeducação, além da falta de empatia com aqueles que têm uma criação num ambiente hostil repleto de vulnerabilidade, um olhar monocular muitas vezes permeado de raízes patrimonialistas e desprovido de foco na dignidade da pessoa humana. Trabalhando na área observa-se que a redução da maioridade penal não deve prosperar. O problema do envolvimento infracional dos adolescentes tem raízes sociais que devem ser trabalhadas em cada lar, cada comunidade, até atingir um todo.
 
Neste contexto e sem políticas de inclusão social, redução das desigualdades e fortalecimento da pessoa humana desde os primeiros anos de vida, reduzir a idade de responsabilização criminal seria apenas um paliativo claramente embasado no Direito Penal de Emergência, que apenas busca punir em vistas a trazer sensação de ‘pseudo’ justiça à sociedade, sem cuidar dos problemas sociais que levam essas pessoas ao envolvimento com a criminalidade.
E qual o caso mais te emocionou até hoje na Defensoria?
Trabalhar com jovens é algo que me emociona diariamente na Defensoria Pública. O trabalho é difícil, a luta é grande, por isso, unir forças é a melhor forma de lutar por aquilo em que acreditamos. Em nossa atuação, desenvolvemos um projeto de musicalização em ambiente simulado para adolescentes autores de atos infracionais que estejam cumprindo medida socioeducativa. A música por si só já emociona. É arte, é vida em notas. Poder proporcionar aos adolescentes, que muitas vezes se quer tiveram oportunidade de conhecer um instrumento, a aprendizagem de musicalização com vistas à fomentar a profissão de músicos, além de aproximá-los da cultura - que muitas vezes é negligenciada em determinadas camadas sociais – é muito gratificante.
 
Além do viés lúdico, o projeto é capaz de preparar os adolescentes para a profissionalização e inclusão no mercado de trabalho, permanecendo por 16 meses com remuneração e carteira de trabalho registrada pelas empresas parceiras no projeto, já na condição de aprendizes. A profissionalização é uma área bastante problemática em se tratando de egressos da socioeducação, principalmente em razão do preconceito, porém, imprescindível para a erradicação da reincidência.
 
Outra vertente que também nos emociona e nos orgulha na atuação perante os adolescentes é a parceria que foi feita com uma universidade particular da cidade (Unopar), onde estudantes de psicologia, supervisionados, realizam atendimento psicológico aos adolescentes nas unidades socioeducativas, de forma a ofertar este acompanhamento tão importante para esta fase da vida, já que são pessoas ainda em desenvolvimento e que muitas vezes é inacessível à população mais carente.
 
A história de vida desses adolescentes é emocionante e, infelizmente, leva a um sentimento de impotência, muitas vezes. Com projetos e parcerias como as descritas, podemos aproximar a sociedade dos problemas enfrentados pelos jovens, além de auxiliá-los em áreas que são desafios ou que são tolhidas de seu desenvolvimento como pessoa.
Uma outra ligação forte na sua vida é o samba. Como que o estilo musical começou a fazer parte do seu cotidiano?
Como eu disse, a questão social nunca foi tratada em casa. Então, quando eu comecei a entender um pouquinho melhor a história do meu povo, da minha ancestralidade, comecei a perceber porque a escola de samba me fazia tão bem. O samba surgiu como um meio de resistência, um alívio para a dor, um acalento para os negros tirados de sua nação e explorados sem limites em terras desconhecidas. Era o momento de rememorar os batuques e sons africanos, de alegria, de interação, de oração, comunhão, refeição. Ele acolhe as minorias e não faz distinções das diferenças, como a cor. É uma força inclusiva.
 
Amo o samba, me sinto acolhida. Todas as minhas lembranças boas de infância têm relação com esse estilo musical. A minha família é muito ligada ao carnaval, tio - mestre-sala; mãe - velha guarda; irmão – ritmista e irmã- destaque. Já desfilei como comissão de frente e princesa da bateria. Posso dizer que o samba faz parte da minha vida desde sempre.
E dentro da escola de samba, qual foi a sua maior emoção e por quê?
Além de ser um espaço de arte, a escola de samba é um local onde as diferenças não importam, como eu disse. Então, eu podia ser bonita (mesmo achando que era feia pelos padrões europeus impostos pela ditadura da beleza). Foi lá que eu vi meu tio faxineiro, um dia depois de ter sido humilhado por ter entrado no elevador “errado”, ser aclamado por seu dom de mestre-sala. As pessoas negras sofrem todo tipo de preconceito e isso não acontece lá. Na escola de samba elas são respeitadas e, até mesmo, exaltadas. Não existe emoção maior do que estar num espaço onde você simplesmente pode ser quem é independente da cor de sua pele.
Há um samba de Candeia - famoso sambista, cantor e compositor brasileiro-, que exalta o protagonismo do negro no samba, na música "Dia de Graça". Você se identifica com isso?
 
"Negro não se humilhe nem humilhe a ninguém. Todas as raças já foram escravas também. E deixa de ser rei só na folia e faça da sua Maria uma rainha todos os dias! Cante o samba na universidade e verás que seu filho será príncipe de verdade..."- Candeia
 
Sim, me identifico bastante com esse samba e com tantos outros. Candeia foi um defensor do samba-enredo e do papel da escola de samba como um símbolo de arte e resistência negra. Embora hoje o Carvanal tenha perdido um pouco da essência inicial, local predominantemente de negros, ainda existe o espaço de respeito, de protagonismo negro e liberdade. O samba é isso: propicia um espaço de inclusão e expressão. Quando sambamos sentimos o ritmo e a emoção de fazer parte de uma história bonita e ao mesmo tempo sofrida de um povo que apenas quer viver sem se sentir oprimido ou excluído. Sonhamos com um tratamento mais isonômico e respeitoso, mas, nas palavras do saudoso mestre, acredito que é hora de deixar “...de ser rei só na folia favela e faça da sua Maria uma rainha todos os dias. E cante o samba na Universidade e verás que seu filho será príncipe de verdade... ”
E, por fim, o que você acha que precisa ser feito para o fortalecimento da Defensoria Pública?
A Defensoria Pública do Paraná tem uma atuação bastante limitada, pois atualmente possui apenas 94 defensores públicos, sendo que de acordo com levantamento o ideal seriam aproximadamente 900 profissionais. Assim, o fortalecimento da Instituição está diretamente relacionado ao aumento do número de membros, fato que viabilizaria o atendimento em mais áreas e também em outras comarcas para promover o acesso à Justiça daqueles que têm seus direitos violados reiteradamente e não possuem voz para defendê-los. Com maior investimento na estruturação da Defensoria Pública, a sua finalidade poderia ser atingida com mais eficiência.
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