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09/01/2019

#Artigo - Tribuna da Defensoria: Indeferimentos de prisão domiciliar devem ser revistos

Fonte: Conjur
Estado: CE
Foi impetrado perante o Supremo Tribunal Federal, em maio de 2017, o Habeas Corpus coletivo nº 143.641, com pedido de medida liminar, em favor de “todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, e das próprias crianças”, tendo como autoridades coatoras Juízes e Juízas das Varas Criminais e seus Tribunais Estaduais e Federais, bem como do Distrito Federal e Territórios, e o Superior Tribunal de Justiça.
 
O Coletivo de Advogados em Direitos Humanos – CADHU, impetrante, requeria a substituição a prisão preventiva pela prisão domiciliar, nos termos do art. 318, incisos IV e V, do Código de Processo Penal, com as alterações da Lei n. 13.257/16, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, a partir do caráter objetivo dos requisitos elencados, em razão de o Poder Judiciário continuar indeferindo os pleitos de substituição em aproximadamente metade dos casos, com base em elementos subjetivos, especialmente os próprios requisitos da prisão preventiva, e de forma díspar que acentuavam a enorme seletividade do sistema de justiça penal.
 
Argumentou-se, ainda, que as péssimas condições das unidades prisionais em geral, reconhecidos assim pela ADPF 347 – Estado Inconstitucional de Coisas, como tratamento desumano, cruel e degradante que infringe os postulados constitucionais relacionados à individualização da pena, à vedação de penas cruéis e o respeito à integridade física; e, em especial, os destinadas às mulheres, consistindo o encarceramento em uma política criminal discriminatória e seletiva, com desmesurado impactando nas camadas mais pobres, e agravado pela ausência total e parcial de instalações dignas e estruturadas para atendimento às gestantes e crianças.
 
A Defensoria Pública do Estado do Ceará solicitou seu ingresso como custos vulnerabilis, em cumprimento à missão institucional de acesso à Justiça e promoção dos Direitos Humanos de pessoas e grupos vulneráveis[1], inscrita no art. 134 e em consonância com os fundamentos, objetivos, direitos e garantias proclamados pela Constituição Federal, trazendo os argumentos institucionais e anexando material colhido no Instituto Penal Feminino do Estado, tais como relatórios de inspeção e números da realidade local.
 
A DPCE também anexou a relação nominal de todas as mulheres inseridas nas condições referidas na ação, demonstrando ser possível a utilização do Habeas Corpus para promoção de direitos coletivos, de maior amplitude subjetiva, considerada a possibilidade de figurarem como beneficiários da prestação jurisdicional um conjunto de pessoas com interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos, passando os ordenamentos modernos a admitir a tutela dos direitos coletivos e a tutela coletiva de direitos, cuja interpretação deve dialogar com as demais ações constitucionais também expressamente prevista na Constituição, como a Ação Civil Pública, o Mandado de Segurança e as disposições do Novo Código de Processo Civil, conforme já discutido em artigo.
 
No mérito, o Supremo Tribunal Federal conheceu e concedeu parcialmente a ordem, em 20 de fevereiro deste ano, estendendo-a de ofício a todas as mulheres, mesmo as não relacionadas pelas autoridades estaduais e Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN, inclusive às adolescentes que se encontram presas nestas condições, e às mães de pessoas com deficiência. Em todos os contextos, excetuou-se os “casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas”, as quais deveriam ser avaliadas e fundamentadas pelos juízes.
 
Importante ainda ser consignado que a decisão do HC 143.641 constitui um marco histórico na evolução no próprio instituto do habeas corpus, na medida em que reconhece o seu cabimento e permite o seu alcance a uma massa, embora não identificada, mas identificável e que está sujeita a constrangimento provocado por juízes singulares e tribunais de variadas instâncias.
 
Entretanto, mesmo diante do pronunciamento definitivo do STF, o Poder Judiciário do Estado do Ceará continuou a descumprir a lei e os termos da decisão, opondo diversos entraves à concessão da substituição da prisão domiciliar. Esses obstáculos foram observados em três momentos distintos:  inicialmente, quando da comprovação da maternidade, pois o Poder Judiciário exige a juntada de certidões de nascimento das crianças, o que nem sempre é possível pela mulher custodiada, por sua família ou pela defesa técnica; 2) após a efetivação do pedido de substituição da prisão preventiva pela domiciliar, devido à irrazoável demora, tanto no primeiro grau quanto no segundo grau, para apreciação do pedido; 3) em um terceiro momento, na análise do mérito do pedido, em que são aplicadas exceções de forma indiscriminada e sem a devida fundamentação, que contrariam inclusive o que fora decidido pelo STF, como ocorre no caso da presunção de periculosidade das presas por tráfico e também da impossibilidade de prisão domiciliar para presas que foram autuadas em flagrante traficando no próprio domicílio.
 
Na data de 19 de dezembro de 2018, foi promulgada a Lei 13.769/18, cuja publicação se deu no DOU do dia seguinte, em que o legislador ordinário plasma na legislação processual penal, pelo menos em parte, o teor da decisão tomada no HC coletivo 143.641.
 
De fato, a lei altera o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) para estabelecer, em face dos critérios objetivos estabelecidos no art. 318, as únicas exceções admitidas à substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar:
 
Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que:
I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça à pessoa;
II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.
 
Art. 318-B. A substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 deste Código.
 
A força impositiva da necessidade de ser reconhecido e efetivamente aplicado o benefício restou traçada na literalidade do texto legal do artigo 318-A, que substituiu o termo poderá por será, de modo que, nestes casos, não compete ao magistrado confrontar a possibilidade da prisão domiciliar com as necessidades da prisão preventiva. Isto não significa, todavia, que a prisão domiciliar não possa ser aplicada inclusive nas hipóteses de crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou contra filho ou dependente. O que foi destacado é o caráter objetivo da aplicação da domiciliar às mulheres mães de crianças ou deficientes e gestantes em situações que não envolvam as exceções apresentadas.
 
A alteração também corrigiu lapso da decisão que concedeu o habeas corpus ao esclarecer que a violência ou grave ameaça em questão é restrita à pessoa.
 
Além do mais, a nova lei retirou do rol de exceções as situações excepcionalíssimas, previstas anteriormente na decisão do Supremo Tribunal Federal e que eram utilizadas para denegar a prisão domiciliar. A imprecisão do termo abriu margem para diversas interpretações pelo Poder Judiciário, em grande medida, arbitrárias, contrariando os fins propostos na ordem concedida. Tais arbitrariedades ficaram consignadas na decisão do Min. Ricardo Lewandowski, tomada em 26 de outubro de 2018, que diante da “relativa dificuldade de mudança cultural” o teria convencido da “necessidade episódica de análise de casos concretos, como forma de enriquecer a decisão com as variáveis que se apresentam na realidade forense”. O ministro não reconheceu como excepcionalidades a suspeita de que a presa poderá voltar a traficar caso retorne à sua residência; a prisão em flagrante sob acusação da prática do crime de tráfico; a passagem pela vara da infância ou o fato de a mulher não ter trabalho formal, entre outras.
 
Assim, não é possível a denegação da substituição da prisão provisória em domiciliar nas seguintes situações:
 
a) Indeferimento da prisão domiciliar em razão de suposta periculosidade da mulher baseada a partir da imputação do delito e sem comprovação - o que já não é aceito pelo STF como fundamento para a decretação da prisão preventiva em qualquer situação e, com maior razão, não pode ser aceita para negar o direito à prisão domiciliar da mulher nas situações não excepcionadas pela nova lei.
 
b) Indeferimento da prisão domiciliar para resguardar a ordem pública, o que é ainda mais problemático pela dificuldade de precisão conceitual que possibilita o uso arbitrário, indiscriminado e abusivo do termo ordre publique para decretar a prisão sem necessidade de fundamentá-la adequadamente.
 
c) Indeferimento da prisão domiciliar para mulheres acusadas de traficar na própria residência, sob a alegativa de que a medida não beneficia os filhos que estariam em situação de risco.
 
No país que é o terceiro em encarceramento de pessoas no mundo, estando abaixo apenas dos Estados Unidos e da Rússia, e onde as mulheres compõem o setor de mais rápido crescimento dentre a população carcerária brasileira, atingindo a marca de 42 mil mulheres presas, já não é sem tempo pensar em soluções que realmente promovam mudanças no falido sistema prisional brasileiro.
 
A lei poderia, por exemplo, ter previsto outras medidas para tornar mais célere a concessão da prisão domiciliar, como: (i) estabelecer prazos ou, no mínimo, prioridade para a análise do requerimento de prisão domiciliar da defesa; (ii) determinar que as autoridades policiais diligenciem de forma a requisitar as informações e documentos necessários sempre que forem informados no inquérito ou no auto de prisão sobre a existência gestação, de filhos menores de 12 anos ou deficientes; (iii) estabelecer que as unidades judiciárias passem a utilizar o Portal Oficial dos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais – também conhecido como Sistema CRC-Jud, instituída pelo Provimento nº 46 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que está em funcionamento e que “congrega toda a base de dados de nascimentos, casamentos, óbitos, emancipações, ausências e interdições, permitindo a localização de assentos em tempo real e a solicitação de certidões eletrônicas e digitais entre cartórios e entre cartórios e Poder Judiciário”. Todas essas medidas contribuiriam ainda mais para efetivação da prisão domiciliar.
 
Faz-se ainda necessário destacar que, no bojo das decisões judiciais que aplicam as prisões domiciliares a mulheres, sejam admitidas possibilidades para o deslocamento em situações necessárias que, embora não urgentes, constituem momentos necessários ao exercício da maternidade responsável, a exemplo do acompanhamento pré-natal, em casos de gestantes, ou das necessidades de deslocamento para acompanhamento periódico às demandas de saúde ou de educação dos filhos.
 
No que tange ao desenvolvimento de políticas públicas, a nova realidade prisional destas mulheres convoca as secretarias estaduais prisionais a fomentarem projetos que incentivem a capacitação e oportunidade de atividade econômica dentro do recinto doméstico, uma vez que, em grande medida, são elas as únicas ou mais importantes provedoras da prole. Programas que atinjam estas perspectivas, além de reduzirem a danosidade social das prisões de mulheres com o contexto maternoinfantil, levam à reflexão social das diferentes possibilidades de se prevenir e punir o crime de forma mais humana.
 
A decisão do HC 143.641, em conjunto com a Lei 13769/18, tem especial importância no contexto das questões prisionais, que exigem uma postura ativa do Judiciário e das demais instância jurídicas e políticas para sua solução humanística, ampliando a lente para as questões de gênero e das circunstâncias que o envolve, notadamente a maternidade.
 
Por fim, em razão dos fundamentos lúcidos lançados pelo Min. Ricardo Lewandowiski ao analisar os inúmeros casos individuais relatados e com muito maior razão com a redação trazida pela nova lei, devem ser revistas todas as situações prisionais das mulheres que tiveram indeferidos seus pedidos de substituição de prisão preventiva em prisão domiciliar com base na excepcionalidade.
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