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25/05/2018

Justificando: Da difícil arte de ser Jhonathan ou Como o estado não sabe que você existe, mas a polícia te encontra

Fonte: Justificando
Este ano a Campanha da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) trata do sub-registro. Tema transversal a todas às áreas de atendimento da Defensoria Pública, a ausência de acesso à documentação básica por parte ainda expressiva da população brasileira joga na invisibilidade quem mais precisa das políticas estatais.
 
Empolgada com a história de um jovem que atendi quando ainda era um adolescente internado em uma unidade socioeducativa do Rio de Janeiro, resolvi ir atrás dele. Queria que ele contasse sua história no lançamento estadual da Campanha.
 
Jhonatan tinha 17 anos quando o conheci. Tendo ingressado no sistema do DEGASE – Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Rio de Janeiro –, tinha uma Ficha de Antecedentes Infracionais (FAI) com nome e sobrenome.  Mas me dizia que nunca havia sido registrado.
 
Depois de uma rápida busca, descobri que, de fato, apesar de figurar como “adolescente infrator”, Jhonatan não tinha registro de nascimento. Filho de pessoas em situação de rua, fora criado por uma mulher, dona da birosca em cuja calçada dormia com a família.  Mas nunca “tiraram sua certidão”. Quando foi apreendido, Jhonatan deu o sobrenome de sua mãe de criação. 
 
O ciclo de pobreza tinha se fechado. Apesar de não existir perante o Estado Brasileiro, Jhonatan foi representado, julgado e internado. Criminalizado antes de ser reconhecido como cidadão.
 
Quando ele saiu da internação, marquei com ele e a mãe na Defensoria e ingressamos com uma Ação de Adoção cumulada com Registro Tardio. Anos se passaram até que ele conseguisse a sentença que finalmente o reconhecia como alguém que existia formalmente perante o sistema que implacavelmente havia tirado sua liberdade tempos antes.
 
Fiquei feliz quando a assistente social que o atendia na unidade o encontrou há uns dois anos e ele, orgulhoso, contou que tudo tinha dado certo: tinha carteira de trabalho e estava empregado. Agradecia à Defensoria Pública por tê-lo tirado da invisibilidade.
 
Como essa história era linda e precisava ser contada, fui procurar Jhonatan recentemente, para que ele fosse o protagonista da própria narrativa, e gravasse seu depoimento para o lançamento da Campanha.
 
Só que desta vez, a alegria deu lugar à uma enorme tristeza. Descobri que Jhonatan está preso desde o início do ano, aguardando julgamento por homicídio. Entre informações desencontradas, seria integrante de uma milícia na localidade onde mora.
 
A primeira coisa que pensei foi no determinismo que vitima tantos jovens como Jhonatan. Ele seria uma exceção se, depois de ser penalizado antes de ser reconhecido como sujeito de direitos, tivesse mudado de vida e aceitado o destino de ser trabalhador nesse país em que o trabalhador é tão maltratado.
 
Mas alguma coisa aconteceu quando ele já parecia conformado com esse destino.  Fiquei refletindo como a vida dele teria sido diferente se tivesse sido registrado quando nasceu e se não tivesse ido parar no DEGASE. E sobre a missão que nós, Defensores e Defensoras, temos de identificar se há caso de sub-registro em cada atendimento que fazemos.
 
Depois me peguei pensando se realmente Jhonatan cometeu esse homicídio e se é, de fato, ligado à milícia, grupo criminoso difícil de ser investigado e desbaratado, justamente pelas ligações com o Estado.
 
Afinal, quase dois meses depois da execução da Vereadora Marielle Franco, provavelmente pela milícia, nenhum miliciano foi preso. 
 
Mas depois me toquei que nenhum deles deve se chamar Jhonatan.
 
Maria Carmen de Sá é defensora pública no Rio de janeiro e coordenadora de Infância e Juventude da DPE/RJ.
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