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02/03/2017

Morte de um e condenação de outro: “matar dois coelhos com uma cajadada só” – Por Fernanda Mambrini Rudolfo

Fonte: Empório do Direito
Que a acusação no Brasil é mais fácil que a defesa todo mundo sabe. Que a presunção é de culpa até que se prove o contrário, também. Especialmente quando se trata de pobre, preto, morador de comunidades abandonadas pelo poder público, analfabeto, viciado em drogas ilícitas…
 
Diante da cultura punitivista brasileira e do discurso do medo que se vende com tanta facilidade, a acusação se vale, com muita frequência, de elementos ilícitos e de argumentos falaciosos para condenar os acusados. Não trato aqui de todos os membros do Ministério Público, mas de uma postura que se espalha e se encontra com muita facilidade nos quadros do órgão acusatório.
 
Mas, algumas vezes (e espero que essa seja a exceção dentro de uma instituição que deve respeitar os direitos de todos), esse perfil ultrapassa os limites do razoável, mesmo em se considerando a sociedade doentia em que vivemos.
 
Recentemente, ouvi em uma sessão plenária do Tribunal do Júri que, tendo em vista que a vítima também tinha antecedentes criminais e era, provavelmente, envolvida com o crime organizado, era o caso de “matar dois coelhos com uma cajadada só”: um já estava morto, só faltava condenar o outro. A acusação passa, assim, a enaltecer a pena de morte, quando deveria estar, justamente, defendendo a vida.
 
Mas não deveria ser de se espantar, quando é tão comum ouvir falar em “legítima limpeza” – situação em que se dá a legítima defesa e a vítima é alguém que não é visto com bons olhos pela “sociedade”.
 
Essa objetificação do outro vem se tornando cada vez mais banal, mormente quando se trata daquelas pessoas “indesejadas” pela “sociedade”, pelos “cidadãos de bem”. Nunca canso de lembrar que Os Cidadãos de Bem (The Good Citizen) era o nome de revista financiada pela Ku Klux Klan nas primeiras décadas do século XX. Esses mesmos “cidadãos de bem” hoje querem decidir quais vidas valem mais; para quais vidas os direitos têm aplicação.
 
E, curiosamente, as vidas que menos valem costumam ser daqueles que foram solenemente ignorados pelo Estado em toda a sua vida, exceto pelo braço estatal responsável pela punição. Aqueles que não tiveram acesso a saúde, a educação, a segurança pública… que muitas vezes nem sequer tiveram a oportunidade de serem criados por uma família ou de possuírem uma residência sob cujo teto se abrigar.
 
Aparece, então, o Estado, mas não o Estado-providência e, sim, o Estado-penitência, único braço que alcança essas pessoas – se é que podem ser chamadas de pessoas. Como se não bastasse a desproporção entre a omissão quanto aos direitos mais fundamentais e o excesso de atuação para cerceá-los, ainda se desconsidera o valor de suas vidas.
 
E não se tem vergonha de externar esse absurdo pensamento, falando a quem queira ouvir que a morte de uma pessoa é algo benéfico e que algumas pessoas jamais poderão voltar à sociedade, que deveriam ficar eternamente segregadas. É realmente a assunção da política de segregação, em que os “inconvenientes” devem ficar fora da vista dos “cidadãos de bem”. Excluem-se, assim, aqueles que mais precisam de inclusão, que mais carecem de oportunidades, aqueles cujos direitos só existem no papel.
 
Que expectativas podemos ter quando quem tem o dever de garantir direitos exalta a sua violação? Que tipo de justiça teremos se as engrenagens que movem o sistema não se encaixam por um mesmo ideal? Com base em premissas falaciosas e alegações preconceituosas, o resultado não pode ser nada além de violador de direitos.
 
A solução para o funcionamento errôneo do sistema não é fácil, mas certamente passa pelo intenso e reiterado combate a esse tipo de atrocidade. Calar-se, omitir-se, permanecer na sua zona de conforto é algo extremamente conveniente, mas equivale a aceitar a situação, subscrever as ilegalidades e assumir o risco de viver em uma sociedade onde os direitos sejam só de alguns.
 
Por isso, reitero o que já disse tantas vezes aqui. Para mim, só há uma solução: lutar incansavelmente contra a discriminação, contra a seletividade, contra a perpetuação das mazelas da sociedade brasileira. Para mim, só há uma solução: defensorar.
 
Fernanda Mambrini Rudolfo é Defensora Pública do Estado de Santa Catarina. Doutoranda e Mestre em Direito pela UFSC. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela EPAMPSC. Diretora-Presidente da Escola Superior da Defensoria Pública de Santa Catarina.
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